terça-feira, 29 de julho de 2008

A Balada dos Junkies no Céu

As portas de ouro se abrem e eu estou dentro. Os sete anjos tocam Metal Celestial na entrada do salão. Maria, a Virgem, corta os pulsos na coroa roubada do filho. Judas passa por mim, desfilando com sua corda amarrada ao pescoço, e com ela açoita sete vezes minhas costas.

Sobre a mesa da última ceia, Maria Madalena, a Puta, é violentada pelos onze apóstolos simultaneamente. Eu me aproximo dela e lambo seu seio, sugando o vinho que jorra. Atrás de mim, Da Vinci sacode a mão dentro da calça, dizendo:
“Eu sempre soube que seria assim.”

No Salão Imperial de Nod, Caim faz uma nova tatuagem: um cântico trespassado por um tumor. Ele olha para mim e me oferece um cigarro. Eu aceito e vou pedir fogo a Gabriel, que me atende com sua espada flamejante. Kurt Cobain e Darwin discutem suicídio aplicável quando me sento em uma poltrona junto a eles.
“Depois que Polly se foi, eu preferi queimar intensamente.”
“É nossa seleção natural psicológica.”
Kurt acende um baseado e diz através da fumaça:
“Estupre-me.”

No Corredor da Morte, Allan Poe está caído com seu Gato Preto ao lado, mastigando o próprio olho arrancado na mão do mestre.

Quando chego ao Salão do Fogo Emergente, vejo freiras sendo curradas pelos animais do estábulo onde cristo nasceu, e todas as pessoas ao redor assistem e aplaudem o espetáculo. No centro do salão, o Papa se banha no lago de fogo com as sete virgens suicidas, arreganhando os lábios para saudar a minha chegada. Bolhas explodem na superfície e a cruz em seu largo chapéu está derretida, formando um ponto de interrogação. Quando Moisés se aproxima, com os cabelos tingidos de verde, o lago se abre, espirrando a lava fervilhante sobre os rostos e ombros das virgens. Elas são tão sensuais e tão deformadas.

No Vale dos Suicidas, Marilyn Monroe dança com Ian Curtis enquanto Hitler e
Budd Dwyer discursam e atiram contra as próprias cabeças, sem morrer. No meio do salão, uma quantidade infinita de suicidas pende dos galhos retorcidos e mortos de uma árvore gigantesca. A árvore onde Judas se enforcou, agora abrigada por corpos que sufocam eternamente, mas sem deixar de viver.

O Garoto-Elefante, com seu sorriso rasgado no rosto, se aproxima com uma navalha e a estende para mim:
“Quer tentar?”

Dentro da Cova dos Leões, uma multidão alucinada eleva seus braços ao redor de uma arena, gritando e fazendo apostas. No círculo poeirento do centro, Daniel luta contra sete leões que o devoram, despedaçam e engolem. A multidão se agita enquanto o sangue escorre pelos dentes das feras. Todos ganharam as apostas.

No Éden está acontecendo uma grande orgia. No centro, Adão se apresenta sem roupas, ejaculando gasolina sobre os corpos emaranhados que cobrem o chão de mármore. A serpente da perdição, feita de cocaína, esgueira-se entre os braços e pernas e membros suados, enquanto todos cheiram sua pele até que ela se esvaia. A serpente troca de pele e continua seu caminho. Eva se levanta no meio do salão, encosta sua boca em minha orelha e sussurra:
“Essa festa vai pegar fogo.”
O cigarro cai dos meus lábios e o Éden explode em chamas através de gritos e gemidos.

Eu descubro que a Torre de babel finalmente foi terminada. Construída pedra sobre pedra, elevada até o último nível do Céu. Eu subo a escada espiralada, escalando cada degrau, até chegar ao aposento divino do senhor. Em sua cama de ouro encontro Madre Teresa deitada entre Gandhi e Charles Manson. Com o cachimbo pendendo na boca, ela ergue o olhar para mim. A névoa cinza emoldura a pele frouxa do crânio:
“A melhor resposta para tudo? Crack.”
Pelas paredes há pichações, e no chão várias notas de suicídio forrando o assoalho.
Todos eles começam a rir, e eu pergunto onde está o grande criador. Entre gargalhadas roucas, Gandhi responde atrás dos óculos quebrados:
“Você não soube? Ontem subiram aqui e devoraram a cabeça de deus.”
E então eles me ignoram, e estranhas formas surgem sob o tecido. Na janela quebrada do quarto, há uma mensagem escrita no vidro com sangue azul:
“Foda-se foda-se foda-se
foda-se foda-se foda-se foda-se
foda-se foda-se foda-se

Ass.: deus”

Antes que eu saia, Manson pede que eu mande um abraço para Polanski.

Assim que abro as portas do Salão da Via Crucis, vejo Lovecraft e Davi jogando cartas em uma mesa próxima. Johnny Cage e Razel estão fazendo música com os sete pecados capitais, engolindo, invejando, destruindo, rejeitando, excitando e odiando a todos, sem desviar seus olhares do espelho.

Diante de mim, o Conde dos Horrores faz uma reverência. No centro do salão, jesus está sentado em seu trono de sangue e ouro, pregado pelos pulsos à sua cruz. Lúcifer, vestindo uma minissaia e blusa decotada de couro, surge e enche sete taças de ouro com o sangue que escorre pelo corpo de cristo. Ela me oferece uma taça, e eu bebo vigorosamente. Crucificado, jesus pronuncia interminavelmente o valor de PI, enquanto uma longa e brilhante seringa sai de sua boca. Algumas pessoas se ajoelham ao seu redor para escrever coisas em sua pele. Joana D’arc percorre o salão com um longo vestido fúnebre, atraindo os olhares de todos, para então sacar uma espada da cintura e abrir o vente de cristo. Joana volta-se para mim:
“Restam sete segundos.”

Do corpo de cristo saem setenta e sete bebês semiformados e coroados com espinhos. As criaturas de cabeça larga, feridas sangrentas e corpo mutilado correm pelo salão, agarrando e manchando de vermelho os trajes da multidão. Essas crianças são pequenos sacrifícios vivos, matando e crucificando com os próprios braços cada um que cruza seu caminho.

Sacrifícios não devem ser feitos. Joana empunha a espada e sorri para mim:
“Vamos caçá-los.”

domingo, 20 de julho de 2008

Despedida

O estralo de seu pescoço quebrando foi a primeira coisa que cortou o silêncio do lugar. Depois, seu rosto macio e perfeito se desfigurou completamente em sangue quando se encontrou com o chão duro de pedra. Seus braços contribuíram com o grande ruído que fez seu corpo ao bater com o excesso de violência após o fatídico salto que decidiu fazer. Seu tronco jazia já sem vida, mostrando seus ossos frágeis agora escarlates com a poça de sangue que havia feito. Mas antes, durante e depois de sua morte, manteve algo que permanecerá inquebrável, independente da morte ou de qualquer deformação mediante a queda. Seu sorriso tímido que sempre me animava.

Assim morreu a minha esperança.

quinta-feira, 17 de julho de 2008

Sem

Eu era sem forma,
Eu me deformei
Não possuía repertório
Eu o roubei
Uma criança problemática
Que está cansada de problemas
A carta mais baixa
Como ele poderia vencer o jogo?
Eu não jogo baralho
Tão sem talento, sempre inoportuno
Eu ainda sou
A cicatriz que incomoda
Na contramão da moda
Apedrejando nossas janelas
Irracional demais, incapaz de falar
Ninguém poderia imaginar
Eu não tinha deus,
Hoje não tenho nada
Sem roteiro,
Eu rasguei as folhas
Não existe uma resposta
Todos o ignoraram, ele voltou
Eu estou aqui,
Estou indo embora
Eu era sem voz
Continuo um pouco mudo
Ele estava faminto, digeriu a si mesmo
Sem qualquer proteção,
Ele ainda é
Uma palavra de indignação
Eu não saberia dizer
Sempre o filho mais novo
Eu matei meus irmãos
Com a corda no pescoço,
Mas ainda sem a cabeça
Muito sujo, envolto em trapos
Todos se lembram do seu cheiro
Eu deixei de usar roupas
Eu me banho nos seus esgotos
Tão perturbado, digno de pena
Com uma pena escrevo as palavras que furtei
Eu era um aleijado
Ele cortou nossas pernas
Extremamente desprezível, diabólico
Ateando fogo no inferno
Eu era destrutivo,
Não sobrou nada para destruir
Sem luz, em quebrei todas as lâmpadas
Sem calor, ele apagou nossas fogueiras
Tão fraco, repulsivo, sempre sem nada
Como ele poderia ser?
Eu era sem chão,
Eu abri minha cova
Em cativeiro, ele não nos cativou
Eu era sem vida,
Hoje eu posso morrer
Tão sem começo,
Isso não significa que estejamos no fim

terça-feira, 15 de julho de 2008

Lembro...

Lembro-me de ter estado numa quadra de tênis, empunhando uma raquete e com os olhos apertados devido ao grande sol que atrapalhava a vista. Não tinha idéia do que estava acontecendo. Pus me a sentar num banco enquanto assistia a outra partida que havia começado há pouco tempo atrás. Lembro-me de estar cansado, como se tivesse feito algum trabalho árduo, me sentia até triste por estar tão exausto. Abaixei minha cabeça até ouvir o som delicado de uma harpa divina soando uma melodia que me enchia com uma sensação gostosa. Procurei a procedência do som e me deparei com uma bela jovem, cujos cabelos pareciam macios e dourados como a luz do sol que antes me cegava. Ela me chamava para fazer uma dupla com ela num jogo. Meu corpo não respondeu, simplesmente flutuei até seu encontro. Não queria jogar, somente estar ao seu lado me bastava. Ela continuava falando, apesar de só ouvir a harmonia doce e suave saindo de sua boca. Hesitei, olhei fundo em seus olhos castanho escuros que mais pareciam espelhos d’água e não respondi por meus atos quando lhe dei um beijo, calando-a e transmitindo tudo aquilo que estava sentindo no momento em que a vi pela primeira vez. Ela retribuiu o beijo não parecendo se importar com o resto do mundo a sua volta. A quadra desapareceu e com um forte vento, vi a garota se esvair lentamente como um monte de areia de uma duna.

Lembro-me de ter acordado.

sábado, 12 de julho de 2008

Um episódio de conversão

Em uma fazenda no interior de Minas Gerais vivia um bonachão; era ele o embaraço de sua família que, sem ser particularmente beata, esforçava-se ao menos em manter tais aparências. Já o nosso bonachão pouca atenção dava a tais costumes; entre rinhas de galo, botecos e casas de tolerância passava alegremente sua vida, sendo mesmo pessoa simpática e querida, apesar de seus vícios.

Certa manhã logo ao alvorecer, quando voltava para casa por uma estrada de terra após uma de suas costumeiras noitadas, aconteceu dele notar uma figura acocorada rente à cerca que delimitava a propriedade à sua esquerda. Ao passar por ela, sentiu os cabelos arrepiarem e o sangue gelar nas veias: era uma criatura de não mais que um metro de altura, de pele marrom, grandes olhos vermelhos sem pálpebras numa cabeça desproporcionadamente grande para o resto do corpo e ornada de três protuberâncias, como que chifres. A coisa olhava tristemente para ele (ou assim pareceu-lhe, quando veio a pensar nisso posteriormente); no momento, com o coração a sair-lhe pela boca, a única coisa que pôde fazer foi sair em desabalada carreira, invocando sem voz o nome de Deus, Jesus Cristo e de todos os poucos santos que conhecia, e desta maneira chegou em casa, mais morto do que vivo.

Crente de que havia avistado o Diabo, daquele dia em diante mudou radicalmente o bonachão, abandonando as rinhas, botecos e prostíbulos e trocando-os pelas igrejas, novenas e constantes leituras da Bíblia Sagrada; ganhou assim sua família mais um membro digno de seu respeito e admiração (ainda que já não tão simpático como antes), que não se furtava a contar a história de sua conversão a quem se dispusesse a ouvir, sem saber o que se passara naquela estrada, depois de sua partida...

A estranha criatura acocorada ainda olhava o bonachão desaparecer numa curva do caminho quando uma alva luz surgiu por trás dela; sem se voltar, pergunta com voz áspera e tom zombeteiro:
- “E então, que tal”?
E uma voz maravilhosamente suave e musical, posto que aterradora se fez ouvir:
“- Cumpriste o que te fora ordenado, puseste mais um filho de homem no caminho da Santa Igreja do Senhor. Haverás de ser chamado para prestares outros serviços desses, ainda.” E, com tais palavras, a luz se tornou mais intensa e então desvaneceu-se, anunciando a partida do anjo.

Sozinha na estrada, a criatura acocorada já não tinha mais tristeza no olhar: os grandes globos vermelhos brilhavam de malícia...

“- Sim, prestar-lhe-ei este serviço outras vezes, quantas você quiser! O prazer é meu em fazer perder as almas dos homens empurrando-os para essa 'santa igreja', nossa de corpo e alma, meu pobre cego!” - pensou, enquanto se desfazia em espirais de negro fumo infernal...

quarta-feira, 9 de julho de 2008

No Ônibus Azul...

Um ponto de ônibus nunca foi um lugar muito querido de minha parte, mas lá estava eu. Sempre achei o transporte público parecido com um carro de boi, onde os transportados possuem olhares e mentes vazias, mas ainda assim tive que pegar um ônibus, afinal, treinos de parkour sempre me deixam entusiasmado e disposto a fazer qualquer coisa. Esperei os mais longos 30 minutos da minha vida até o transporte chegar, cheio de gente.

Sabia que tinha que pegar um ônibus de cor azul que subisse a Avenida Paulista, mas pela impaciência e vontade de chegar no treino peguei o primeiro ônibus que pareceu azul para mim. O ônibus estava cheio de gente que parecia estar vendendo legumes frescos na feira, ou que teria uma fragrância natural de hortaliças da roça. Comecei a achar estranho o ônibus fazer curvas numa avenida reta e resolvi perguntar ao cobrador para onde o ônibus ia, até que fui gentilmente alertado que a passagem custava R$2,30.

Com medo de rir na cara do pobre cobrador que não entendia as minhas perguntas, resolvi confiar em minha intuição. Alguns minutos se passaram até perceber que peguei o ônibus certo, o que me deixou feliz por ainda saber diferenciar cores. Quando a hora havia chegado, dei o sinal para sair do ônibus e esperei até que abrissem a porta, que para minha surpresa, não abriu. Passou-se um ponto, dois pontos de ônibus, até que uma massa de civis irritados gritou que queria descer do ônibus, para a minha sorte.

Desci do ônibus na esperança de não encontrar tanta gente com cheiro de cebola tão cedo, apesar deles terem sido úteis quando houve necessidade. Enfim, tracei meu caminho até o lugar
marcado para o treino, sentindo uma vontade violenta de tomar sopa.

quinta-feira, 3 de julho de 2008

O Tratado do Siamês Castrado

Era uma vez um gato siamês. Ele vivia com seus donos - uma típica família burguesa, composta de um casal e dois filhos. O siamês gostava da sua vida, ainda que sentisse que aquela não fosse a sua vida de fato. Ele não tinha, no entanto, o desejo de circular pela cidade tal como faziam todos outros gatos. Desejava apenas ter uma companheira. Sentia-se terrivelmente só e angustiado, não conseguia entender porque para os outros gatos era tão fácil conseguir uma fêmea. A natureza seguia seu curso, disso sabia, mas achava que a natureza se esquecera dele: não se sentia parte daquele mundo burguês, nem à cidade, nem à sua própria condição de gato siamês. Estava em crise, era evidente, e não eram poucas as vezes em que preferia estar morto a continuar vivendo uma vida que não lhe parecia real.

Já havia chegado à maturidade sexual há muito tempo, mas não havia adotado o comportamento típico da espécie porque estava preocupado demais com seus pensamentos - e neste ponto, há de se explicar algumas coisas. Diferente do que se sabe (ou do que se pensa saber) os animais também pensam. O que difere os nossos pensamentos é a capacidade de abstração. Para derrubar uma fruta com uma vara de bambu o macaco precisa pensar. Mas seu pensamento não é abstrato o bastante para levar o fator do tempo em consideração: por isso, uma vez obtido o alimento, ele se desfaz da sua ferramenta, que poderia ser usada mais vezes. Mas acontece que o nosso gatinho também sofria porque seus pensamentos eram mais abstratos do que os dos demais gatos, e por isso, ele procrastinava ao invés de viver.

Chegou então o dia em que o gato siamês decidiu sair de sua gruta imaginária e pôs-se a procura de uma fêmea. Era um belo siamês, tinha lindos olhos cinzentos e seu pêlo era macio como seda -mas não era a consciência da própria beleza o que lhe dava coragem. Julgava-se, apesar do sofrimento, ou justamente por causa dele, melhor do que os outros gatos. Era como se ele estivesse um passo a frente, rumo ao que quer que eles estivessem destinados a se tornar. Ora, se os tolos macacos que não sabem reaproveitar suas ferramentas deram origem a esta coisa execrável que é o homem burguês, do que seriam capazes os gatos? Certamente de algo muito melhor, algo de que Deus finalmente se orgulhasse. Eles seriam a Coroa da Criação, e o nosso gato siamês era o primeiro dessa nova espécie. Mas este era também um defeito do gato: ele era megalomaníaco, e como todos os que sofrem desse mal, ele não tinha idéia disso! Ele queria uma companheira para completar seu vazio, para apaziguar as suas dores, para ser a Grande Mãe da nova raça, mas era justamente essa grandeza o que lhe afastava das suas fêmeas. Os gatos agem por instinto, eles miam, se cheiram, se esfregam, e então, uma vez escolhidos os amantes, eles consumam seu ato de amor. Mas o nosso gato era cordial demais, educado demais, pensativo demais: as gatas se riam dele, e ele se sentia cada vez mais solitário, e a vontade de deitar-se no asfalto e deixar que um caminhão lhe esmagasse o corpo crescia a cada dia. Todavia, o seu real infortúnio ainda estava para começar.

Os seus donos já haviam percebido o estranho comportamento que adotara (estranho aos olhos humanos, é claro) e não gostaram nem um pouco. Ele emagrecera muito, seus pêlos estavam caindo e ele passava as noites miando pelos telhados. O que para ele era um retorno às origens, a pura afirmação do ser e da sua natureza felina, para seus humanos (que eram fiéis cumpridores dos deveres e que se julgavam) aquilo tudo era uma doença. "O nosso gato entrou no cio, querida. Vamos ter de castrá-lo."

O nosso gatinho, num sobrenatural esforço otimista, decidiu crer que na verdade aquilo seria bom - não sofreria mais à procura de uma fêmea, e poderia dedicar o resto de sua vida às questões espirituais. Mas aconteceu que certo dia foi topar com uma angorá, de um apartamento vizinho, que apesar de não lhe despertar atração sexual (o que já lhe era impossível) compreendia as suas angústias! Ela também se julgava a frente de seu tempo, e que decidira, desde a mais tenra idade, que só amaria um gato que pensasse de modo tão abstrato quanto ela. Finalmente o gato siamês havia encontrado a sua consorte, mas... e agora? Gatos não são anjos: se os seres humanos não conseguem suportar uma relação amorosa puramente espiritual, sem o ato consumado, os gatos muito menos! Percebeu então a sórdida condição em que se encontrava. Tivera toda a natureza de seu ser violentada por caprichos humanos. Fora cruelmente dilacerado, mas seus donos não viam assim, porque não o enxergavam como um ser dotado de vontade, nem de pensamentos, nem de sentimentos: era um grão de areia. Um gato de apartamento burguês, que era mais útil sendo gordo e recluso do que vivendo e exteriorizando a própria essência do seu ser.


Com indizível tristeza, o Siamês Castrado deitou-se na varanda de sua amada, e contemplou o nascer do Sol, como se ele predissesse a chegada da Nova Era. Ela, refestelada no parapeito da janela, observava distante, com os olhos feridos por lágrimas, o único gato que amara em sua vida definhar e morrer.



Findou-se assim a triste epopéia do Gato Siamês.