sexta-feira, 29 de agosto de 2008

Um poema soprado de uma fada & declamado a um anjo

Segurei-a firme pela leve cintura
E girei-a no ar
Ela corava, como uma rosa
E se ria, indefesa
Quando, com gosto profundo
Embebia-me no tão doce, cálido
E tépido odor de sedas claras
Que rescindia do teu fresco regaço!

terça-feira, 26 de agosto de 2008

1:6

1:6

O corredor que nos leva do beco ao local marcado é longo e estreito. Frio e escuro, sem cheiro ou umidade. As paredes de cimento roçam contra os braços e ombros dos nossos casacos, camisas e jaquetas. Enfileirados, caminhamos um atrás do outro por quase duzentos metros, até a porta de ferro. Sem placas. Sem ruídos. Nenhum sinal de perigo ou alerta. Abrimos a porta e entramos.

Uma sala: quatro paredes, o chão e o teto. Um cubo. No centro, uma mesa redonda circundada por seis cadeiras. No centro da mesa: uma maleta de couro lacrada; uma ampulheta; um revólver e cinco balas. Ao redor da arma, da mesa e das cadeiras: três janelas retangulares, cada uma cravada em uma parede. Janelas espelhadas. Um ar-condicionado quebrado. E a porta que trancamos atrás de nós.

Um a um, sentamos em nossos lugares. Nós somos seis. Cada cadeira é uma poltrona estofada de veludo preto, que se torna nosso trono a partir de agora.

O Rei.

A Dama.

O Valete.

O Ás.

O Coringa.

O Número 6.

Por trás das vidraças, todos vêem algo se movendo ou gargalhando. Atrás de seus reflexos, imaginam homens de terno fazendo apostas e se acomodando em cadeiras de couro, apontando com seus dedos largos para nós e ansiando pelo começo do espetáculo. Talvez nós estejamos quase mesmo sentindo o cheiro amargo dos seus charutos importados. Talvez não.

Nós sabemos as regras. Sabemos como tudo funciona. O Rei deve iniciar a rodada.

Depositamos nossas cartas sobre o tampo envernizado de madeira à nossa frente. Não temos nomes aqui. Não temos empregos ou contas bancárias. Somos seis cartas de baralho, nenhuma com mais poder do que a outra. A luminária redonda, que pende do teto a pouco mais de meio metro sobre nossas cabeças, estala e esquenta no ar. Caçamos com os olhos a identidade de cada adversário, enquanto uma após outra as cartas vão sendo baixadas.

A primeira regra: seis jogadores.

É tudo uma questão de probabilidade, sorte ou destino. Nomes diferentes dados para a mesma face de um dado qualquer. Isso não tem a ver com dinheiro. Não tem a ver com beleza, personalidade ou posicionamento social. Não é uma maneira de dar significado a nada, nem mesmo para sentir a adrenalina pulsante. Nós somos apenas seis pessoas prontas para morrer.

O Rei apanha a arma lentamente de cima da mesa: um sujeito grisalho, gordo e com um bigode seboso. Sua cara é cravejada de rugas, como uma espécie de mapa por onde as gotas de suor começam a escorrer. Como uma represa sendo rompida. Como um homem meio calvo pinçando uma das balas com seus dedos gordurosos, penetrando-a na câmara do revólver e girando o tambor.

A rotação estraçalha mecanicamente o silêncio da sala. Nós não conversamos. Todos os olhares se voltam para o Rei, que com um movimento do pulso joga o tambor novamente para dentro da arma, alinhando-o.

Alguém ergue a ampulheta e a põe de cabeça para baixo. Dentro de meio minuto, o último grão cairá. O Rei puxa o cão e ergue a arma na direção da têmpora.

É como rolar um dado.

O REI

Eu chego em casa logo após a meia-noite. Depois de estacionar o carro na garagem e me debater para encontrar a chave da porta no molho do chaveiro, eu entro e vou para a sala sem acender qualquer luz. Afrouxo a gravata, tiro os sapatos, desabotôo a camisa e abro a fivela do cinto. Deixo tudo jogado a meio caminho do quarto e da sala.

Na entrada do quarto pintado de rosa, me detenho por um instante para vislumbrar sua silhueta. Toda vez que olho para ela, é como se algo despertasse dentro de mim novamente. A mesma velha antiga paixão me consumindo por dentro, devorando minhas entranhas. Em todos esses onze anos, ela simplesmente me parece cada dia mais bela. Mais sensual. Pronta para me fazer feliz.

Eu me aproximo dela na penumbra do quarto. Virada de costas, com os ombros desnudos e a coberta caída perto dos pés, ela parece uma personificação do desejo sexual. Tão pura, mas, ainda assim, tão encantadora. Como apenas uma dama sabe ser; inocente e excitante ao mesmo tempo. Meus dedos tocam seu ombro esquálido e branco, e sinto algo se endurecer dentro de minha calça, ao longo da perna.

Uma fome crescente.

Deixo minha mão deslizar sobre a camisola de cetim rosado que dei a ela no natal. Ela continua imóvel, dormindo como um anjo em ascensão. Posso sentir suas costelas através do tecido, movendo-se para baixo e para cima junto com a respiração. Para cima. Esgueiro meus dedos pela curva da sua bunda que se projeta perfeitamente.

Com a outra mão, abro o zíper e acaricio meu pau latejante. Ela se vira um pouco, ajeita o rosto no travesseiro e continua dormindo. Sua boca é perfeita, macia e delicada. Ainda agarrando sua bunda, eu estico a mão para fora da calça e a esfrego em seus lábios, umedecendo-os. Ela solta um pequeno suspiro quando eu passo minha mão por entre suas coxas e a toco por baixo da calcinha. Sua pele é quente e lisa. Eu me inclino um pouco mais e começo a afundar meus dedos dentro dela.

Antes que uma explosão irrompe dentro da minha calça, ela suspira novamente, dessa vez assustada. Esfregando os olhos sonolentos, minha filha pergunta:

“Papai, o que o senhor está fazendo?”

A arma estala em falso. O Rei continua no jogo. Sua expressão é de alívio.

Ele enxuga o suor da testa a passa a arma para a mulher ao seu lado.

A Dama: cabelos curtos, espetados, sujos. A maquiagem de dois dias atrás ainda borrada no rosto, riscos pretos escorridos abaixo dos olhos.

Ao segurar o revólver, uma alça do vestido cai. Ela não se importa.

Continuamos todos calados, com olhos vidrados, manchados ou vermelhos absorvendo o opaco brilho refletido no cano do revólver. A Dama espera por alguns segundos até que alguém vire a ampulheta. Ela decide não girar o tambor.

Nós não somos loucos. Apenas pecadores.

A Dama curva o braço na direção da cabeça, não em um ângulo específico. Se a bala sair, seu rosto ficará despedaçado antes de sua cabeça.

A areia cai. A luminária pisca. A Dama engatilha e olha para dentro do cano.

A DAMA

Tudo tem sua primeira vez. Sexo, drogas, bebidas e...

O foda é que ninguém avisa que talvez você se arrependa depois. Ou que uma decisão errada pode fazer você trilhar um caminho sem volta. Ninguém diz. Ao menos, ninguém que saiba do que está falando. Se alguém se ferra bastante ao longo da vida, se sofre diariamente a ponto de desejar morrer todo dia ao acordar de manhã, essa pessoa terá se tornado egoísta o bastante para não ajudar o próximo. Não dividir seus problemas. Não dar conselhos. Você simplesmente deseja que todos se fodam tanto quanto você. Que se fodam tanto quanto fodem você.

Quando eu tinha quinze anos, um amigo mais velho disse que pagava duzentos paus pra foder comigo. Duzentas pratas pela minha virgindade.

Na época eu andava tendo problemas com os meus pais adotivos, e precisava de grana para me mandar. Conseguir minha independência, ser livre, crescer. Eu disse que faria por trezentos. E perguntei o que mais ele poderia me dar em troca.

Pó.

Das cinzas ás cinzas, do pó ao pó.

O mundo não acabará em sangue, mas sim em petróleo. Se você for cremado quando morrer, pode ter certeza de que será fumado por alguém. Cheirado. Esse mundo é decadente o bastante pra isso.

Vestindo uma camiseta e uma calcinha, deitada na cama do tal garoto, eu pergunto o que mais ele tem a me oferecer. Ele abre uma gaveta da escrivaninha e tira um saquinho com pó branco. Cocaína, ele diz. O novo barato.

Sempre é.

O cara manda que eu estique a mão e abra os dedos, depois abre o lacre do saco plástico e põe um pequeno punhado do pó branco sobre as costas da minha mão, entre os tendões do polegar e do indicador. Ele diz que eu devo cheirar aquilo.

Eu obedeço.

Quinze minutos depois, ele está em cima de mim, entrando e saindo, me rasgando de cima a baixo. De certa forma, é tudo como uma grande ilusão. Mas a dor é real. Eu grito e digo que tudo bem, ele pagou pra me foder, mas que poderia ser um pouco mais gentil. Ele gira e deita, me põe sentada em cima do seu cacete e manda que eu cale a boca e continue rebolando. Dá pra pensar que toda aquela grana era um bom motivo para ignorar a dor e suportar o momento. Mas não, não era.

Depois que ele tirou seu pau e gozou em cima de mim, e me disse pra pegar o dinheiro e ir embora, eu me vesti sem muita pressa. Amarrei os cadarços. Prendi o cabelo e contei a grana. Enquanto ele continuava arfando sobre o colchão, me aproximei e disse pela primeira vez a frase que repetiria tanto nos próximos anos que viriam:

“Você pode me dar mais um pouco de pó?”

A arma clica, mas não explode. A expressão no rosto da Dama parece ser de desgosto. Ela continua no jogo.

A arma vai para as mãos do homem à sua direita.

O Ás: dentes quebrados, olhos demoníacos, mãos nervosas. Na face direita um meio sorriso rasgado, o queixo torto repuxando as cicatrizes.

Ele toma o revólver em mãos, gira o tambor e olha para nós com um ar louco e opressivo, sorrindo com sarcasmo e enrugando ar marcas em seu rosto.

Nós não somos perigosos, apenas viciados.

O Ás alinha o tambor e puxa o cão para trás.

“É a volta do parafuso, mais uma vez”, diz ele enquanto enfia o revólver dentro da boca, apertando os lábios em volta do cano.

Alguém gira a ampulheta.

O ÁS

Eu já fui um homem santo. Uma das ovelhas no rebanho do senhor. Pregando, rezando e salvando almas perturbadas. Confortando as pessoas. Dando a elas a garantia de ingressar no paraíso.

Eu também já estuprei, mutilei e marquei várias outras.

Nada na vida é o que realmente aparenta ser. Tudo o que existe tem seu lado oposto. Nem mesmo deus pode ser unilateral.

Sentado no escuro, em cima do carpete gosmento e manchado, eu carrego a arma e a enfio dentro da boca. Com a ponta da língua, eu posso sentir o orifício do cano.

Quando você pára para pensar, muito do que existe no mundo se resume a algo penetrando um orifício. Ou saindo dele.

A volta do parafuso: as armas em geral possuem o interior do cano raiado para conceder maior precisão ao disparo. A bala explode, gira e explode o que estiver na frente. Sua cabeça ou a cabeça de alguém.

A minha cabeça.

Eu já fui um padre um dia. Alguém que acreditava no caminho para a salvação. Hoje eu estou aqui, ajoelhado e mordendo uma pistola. Apenas porque tentei seguir a dualidade da vida, o instinto natural do ser humano de usar todo seu potencial. Ser e fazer tudo o que pode, e não apenas o que dizem para fazer.

Depois que o reverendo encontra um de seus padres currando um coroinha na capela em reforma, a igreja abole a piedade e a clemência de suas virtudes. Expulsam o tal padre e o condenam a uma vida de miséria e pecados.

Tiram e destroem a única parte boa de um demônio.

É como destruir a jaula de um leão faminto, violento e insano.

A volta do parafuso: a espiral da morte.

Estupro, cruz, fogo. Invasão, penetração. Essas são as palavras que piscam de soslaio para mim durante a noite. Eu não posso dizer que me arrependo, mas todos deveriam saber a hora de parar. Todos deveriam morrer no ápice, antes de declinar. Antes de serem obrigados a pagar pelos seus pecados.

Em outra época da minha existência, eu chamaria isso de “redenção”.

Eu puxo o gatilho e a pólvora queima o céu da boca, a arma treme na minha mão e alguns músculos se desprendem do meu rosto.

A volta do parafuso: caído nas trevas, eu sinto ar e sangue em profusão entrando e saindo de um largo buraco onde deveria haver dentes, carne e um pedaço do meu maxilar.

Em outra época, eu chamaria isso de “suplício”.

O revólver clica, explode, arremessa pedaços do crânio do Ás no chão, no teto e na parede atrás dele. Ninguém se assusta. Ninguém pula para trás ou revira os olhos. O corpo morto inclina para trás, e depois para frente, caindo sobre a mesa com um baque molhado. O sangue se espalha pela mesa, umedecendo a carta de baralho. O Ás de espada se torna vermelho.

Enquanto nacos do cérebro dele escorrem pelo cimento e pela vidraça, alguém tira a arma de sua mão. Os dedos frouxos se soltam com facilidade, e a expressão no rosto de todos é de indiferença.

O revólver está na minha mão agora.

A segunda regra: cinco balas.

Sobraram apenas quatro. Cinco de nós ainda estão vivos.

Eu recarrego a arma, giro o tambor e engatilho. Rolo um dado sobre a mesa, ele quica e bate na ampulheta, onde a areia começa a cair.

Eu simplesmente puxo o gatilho.

O NÚMERO 6

Estima-se que cerca de um milhão de pessoas cometam suicídio por ano. Talvez esses números estejam errados em cem ou quinhentos mil, nunca se sabe. Não se pode confiar nas estatísticas. Mas, ainda considerando as estimativas, temos uma margem de três mil suicidas por dia. Seria um suicídio a cada trinta segundos.

Seria?

Essa pessoa que morre... que decide livrar os outros de ouvirem seus problemas e reclamações, essa pessoa que se lança de um arranha-céu ou forra o estômago com comprimidos... que decora a casa com os próprios miolos ou se introduz em um laço de corda...

Quem é essa pessoa?

Ela pode ser seu pai, sua mãe, seu vizinho ou simplesmente alguém que você não conhece. O tempo que você leva para amarrar os cadarços ou ler um parágrafo, é o mesmo tempo que alguém em outro lugar do mundo leva para tomar uma decisão irrevogável. Do outro lado do mundo.

Ou no apartamento ao lado.

O fato de você não conhecê-la não impede que ela morra. Se você pudesse fazer algo, o que faria? E se conhecesse essa pessoa apenas depois de ela ter partido, você tentaria corrigir o erro de terceiros?

Como você agiria?

É possível amar alguém que tirou a própria vida?

E se a sua vida fosse decidida num rolar de dados, qual seria o número da sua morte?

A arma estala, o tambor gira e minha cabeça ainda está no jogo. A areia ainda cai. Eu não me expresso. Corro a arma pela mesa até as mãos do jogador ao lado, atrás da carta do Coringa.

Um vestígio de fumaça negra ainda sai pela boca do Ás.

A Dama: imóvel.

O Valete: sem movimento.

O Coringa: magro, roupas pretas largas no corpo. Tem os olhos de um homem morto, assim como o resto de nós. Ele roda o tambor.

Alguém põe a ampulheta de cabeça para baixo, os grãos de areia vão se amontoando contra o vidro.

As unhas arrancadas envolvem o gatilho, a boca do revólver é pressionada contra o queixo. O Coringa fecha os olhos e atira, por um bilionésimo de segundo o destino é um ponto de interrogação no ar poeirento.

O CORINGA

Uma das minhas clientes me liga, pedindo um pouco de heroína. É uma velha amiga, talvez inocente demais e viciada demais para o próprio bem. Nova demais. Em vez de perguntar se ela tem dinheiro vivo, eu apenas digo que levarei trinta minutos para chegar até o seu apartamento. Ela agradece e fala que eu sou seu último refúgio na terra.

O Santo das Seringas Milagrosas, Pai dos Viciados.

Eu ponho a mercadoria em uma mochila e saio de casa, tranco a porta e desço as escadas. Enquanto espero o ônibus no ponto, um carro de polícia pára na esquina junto a um garoto. Eles fazem negócio. Erva. O trampo todo não dura mais do que cinco segundos.

Quando o ônibus chega, o motorista sobe uma roda na calçada e abre as portas. Eu entro e dou o dinheiro ao cobrador, que me devolve quase o dobro do que deveria. Ele e o cara na direção estão tão chapados que não saberiam distinguir um pedestre de um elefante. Ecstasy. A Droga do Amor e da Direção Perigosa.

No fundo do veículo, vendo a uma senhora um papelote de pó, que ela enfia entre as páginas da bíblia que carrega sob o braço.

Salto vinte e tantos minutos depois, caminhando por duas quadras até o apartamento dela. No caminho, vejo homens, mulheres e crianças enfiadas em becos, com os olhos vermelhos injetados. Alguns estão rindo, outros estão apavorados. Nas vielas adiantes, quase chegando ao meu destino, vejo ainda meia dúzia de putas desfilando sob o sol a pino.

Eu chego ao prédio, passo pela portaria devastada e chamo o elevador. Ele ainda está quebrado, começo a achar que nunca irão consertá-lo. Subo as escadas, pensando que deveria cobrar uma taxa por cada maldito degrau.

Até chegar ao sexto andar, eu me deparo com um casal trepando na escadaria e, alguns lances acima, um velho caído ao lado de uma seringa vazia.

Eu bato na porta, ela abre quase imediatamente, perguntando se eu trouxe. Eu digo que sim, entro no pequeno apartamento e ela bate a porta. Eu pergunto se ela está bem e digo para não ser tão afobada.

Nós vamos para o quarto, eu abro a mochila e peço a ela uma colher e um isqueiro, que chegam até mim em uma velocidade incrível.

Jovens drogados, velhos viciados... todos se tornam patéticos e vulneráveis em algum ponto. Essa garota é menor de idade, mas isso não a impede de ser uma puta. De vender a buceta em troca do dinheiro que ela usa para comprar minha mercadoria. Uma puta e viciada, com menos de dezoito anos.

Esse mundo está indo direto para o inferno, e eu sou o demônio que lucra com essas pobres almas viciadas.

Mas negócios são apenas negócios.

Cinco minutos depois, ela está injetando a heroína na veia, reabrindo um ferimento que nunca fecha. Com o elástico envolvendo o braço, ela morde e puxa para cima a grossa borracha, fazendo saltar a veia.

Ela é só uma criança, e, para ser sincero, isso me deixa muito inspirado. É um tesão ver uma garota tão linda e jovem aceitando a destruição como forma de salvação. É realmente lindo.

Ela cai na cama de pernas abertas. Por baixo da minissaia não há nada além de um paraíso belo e profundo. Então eu pergunto onde está o dinheiro, e ela olha para mim com o olhar doce de uma criança, dizendo que só conseguiu metade da grana.

“A clientela anda fraca”, ela diz, sorrindo e tirando um punhado de notas do bolso apertado.

Enquanto estou conferindo e folheando o dinheiro, ela pergunta se pode fazer alguma coisa por mim.

“Você sabe”, ela me diz com o dedo entre dentes. “Para compensar seu pequeno prejuízo.”

A pequena vagabunda me deu menos do que a metade do que deveria, mas ainda assim eu fico com pena dela. Tão fodida, e tão gostosa. Provavelmente ela não vai durar muito mesmo.

“Vamos, o que você quer que eu faça?”, ela pergunta. Eu guardo o dinheiro na mochila, fecho o zíper e fico de pé ao lado da cama. Talvez mais por piedade do que por desejo, eu aliso seu cabelo colocando-o para trás da orelha, e digo:

“Um boquete até que não seria tão ruim...”

O tambor gira e estala. O silêncio ainda impera dentro da sala. O Coringa continua no jogo, e seu rosto expressa satisfação.

Ele passa a arma para o homem ao seu lado.

O Valete: o mais jovem entre nós, mas não menos destruído. Seus braços têm cicatrizes pequenas e circulares.

O Valete: um viciado. Ele gira o tambor.

Alguém vira a ampulheta, a areia começa a cair e a luz acima de nós pisca duas vezes. O Valete pressiona o cano contra a testa.

Ele não fecha os olhos enquanto puxa o gatilho.

O VALETE

Era uma vez um garoto, filho de um famoso cirurgião plástico e de uma mãe aproveitadora. Como qualquer outra criança bem alimentada, rica e alienada, o menino cresceu e ingressou na faculdade de Medicina.

O que, naturalmente, não significa que ele possuía maturidade ou talento, apenas muito dinheiro e um sentimento de imediatismo.

O garoto então, certo dia, começa a se deixar seduzir pelo poder encantadoramente anestésico dos remédios. Ele consegue receitas falsas para Vicodin, e com isso entra numa descida direta para dentro do buraco mais fundo que sua amargura poderia cavar. Primeiro ele se entope de remédios, ficando alucinado dia após dia. Doses pequenas e grandes viagens.

Então, em um determinado momento, ele precisa dobrar as doses para sentir alguma coisa. Triplicar. Esvaziar os vidros. E deixa de sentir qualquer coisa.

Antes de acabar morrendo pelo excesso de medicamentos auto-administrados irregularmente, o tal garoto decide que precisa de algo mais poderoso. Que o leve a uma nova fronteira.

Na metade do terceiro ano do curso de Medicina, ele descobre o incrível e belo poder da morfina. Uma ou duas vezes por semana, ele vai até o laboratório da faculdade e suga sorrateiramente alguns miligramas para dentro de uma seringa. Mais tarde, ele passa a pegar uma dose de morfina a cada dia, se tornando cada vez mais dependente do troço. Logo o estoque acaba, e a faculdade precisa começar a repor a morfina nas prateleiras com cada vez mais freqüência.

Não demora muito para que o garoto passe mais tempo entrando e saindo do laboratório do que assistindo às aulas. E suas notas baixam. E seus pais percebem que há algo errado. A universidade também percebe. E, um dia, o garoto é pego caído no laboratório atrás de uma mesa, com uma ampola de morfina na mão e uma seringa enfiada no braço.

Expulso da faculdade, expulso de casa, sem direito a nada e enterrado na própria merda, o garoto resolve inventar algum jeito de conseguir dinheiro. Para a morfina. Para os remédios. Para tudo o que ele puder comprar e usar na sua escavação rumo ao fim.

Puta que o pariu, eu sou esse garoto.

O revólver não dispara, o Valete continua no jogo e nós iniciamos a próxima rodada.

Ainda restam cinco jogadores. Quatro balas. A maleta sobre a mesa; fechada.

O Rei é carne e suor quando apanha a arma novamente, gira o tambor e a ergue uma vez mais contra a cabeça. Seus dedos pegajosos engorduram o gatilho.

Uma chance de seis para um. É tão simples quanto rolar um dado.

Nada poderia ser mais simples do que erguer uma arma e puxar o gatilho. É a simplicidade que faz o mundo rodar, as pessoas morrerem e os milagres acontecerem.

O Rei: um revólver apontado para a cabeça, um par de olhos assustados e o dedo que se move.

Alguém move a ampulheta.

Eu estou bêbado a três dias, e o mundo parece cada vez mais uma grande poça de lama, e somos todos pedaços de merda boiando na água lamacenta.

Ela está no chuveiro agora. Minha filha, minha pequena filha. Ela cresceu. Ganhou peitos, pêlos e virou uma puta. Assim como sua mãe.

A garrafa escorrega da minha mão, eu levanto da poltrona e bato na porta do banheiro. Está trancada, e eu bato de novo. Ela grita debaixo da água que eu devo deixá-la em paz. Que eu nunca mais a tocarei outra vez. Ela me manda voltar para a sala e continuar enchendo meu rabo de pinga.

E eu me jogo sobre a porta, arrebento a fechadura e entro no banheiro. É minha obrigação dar a essa garota a educação de que ela precisa.

Minha filha: se contorce toda, gritando e esperneando, mas no fim acaba cedendo. Depois de arrancar a cortina do boxe. Depois de cravar suas unhas em volta do meu pescoço. Depois que eu esmurro sua cara até ela se calar, eu a curro como ela merece ser currada. Enquanto a água escorre sobre nós dois, molhando minhas roupas e o chão do banheiro, fiapos do seu cabelo se desprendem na minha mão e a porra que sai de mim escorre para dentro do ralo em um espiral que leva embora toda a sujeira, podridão e perversidade do mundo.

Eu estou puro e leve de novo.

Algumas horas depois, minha filha está vestida e limpa, com uma mochila nas costas e alguns trocados no bolso.

Ela sai pela porta da frente, e a próxima vez que eu a vejo é em uma foto em preto e branco na capa de um jornal.

Uma nuvem de partículas escarlates irrompe sobre nós, e o ambiente se torna permanentemente vermelho.

O Rei: uma mancha sangrenta escorrendo pelo vidro quente da lâmpada.

A terceira regra: apenas um sobrevivente.

O Rei, com seu suor misturado ao próprio sangue, derruba a cadeira e fica caído no chão. Um pedaço do seu rosto fica grudado sobre sua carta, ainda na mesa. Ele está fora do jogo.

Sobraram quatro de nós.

A Dama se levanta da cadeira para recolher a arma caída.

A expressão de todos é de completa indiferença.

A Dama: há gotas de sangue respingadas em seu rosto, salpicando o batom preto e se escondendo nas rugas abaixo dos olhos. Ela retoma seu lugar, insere uma nova bala e roda o tambor.

Nós não somos doentes, apenas estamos cansados de procurar uma nova doença.

A arma: um dado metálico vivo de pontos pretos fumegantes, rolando nas pontas dos seus dedos.

A Dama alinha o tambor, puxa o cão, fecha a pálpebra em volta do cano. Alguém vira a ampulheta e ela puxa o gatilho.

O que as pessoas deveriam começar a se perguntar é: quantas balas cabem na porra da cabeça de um anjo?

Não é nem meio-dia ainda, e já estou prostrada na avenida mais movimentada do centro da cidade. Aqui, a cada dois metros pode-se encontrar uma puta rebolando e acenando para os carros que passam. Eu sou uma delas. A menina ao meu lado também, mas ela é mais jovem e por isso atrai um número maior de clientes. Ela também é minha amiga, e dividimos um pequeno apartamento a algumas quadras daqui.

Um carro pára no meio-fio e faz sinal para ela. Essa prostitutazinha dá uma piscada para mim, e diz que nos encontraremos mais tarde.

Eu digo a ela para tomar cuidado. “Você sabe como é, princesa, nesses tempos há muitos loucos de terno e gravata por aí. Não confie em ninguém”. E esse tipo de coisa.

Ela entra no carro e o motorista acelera para o beco ou estacionamento deserto mais próximo. Eu fico ali, me lembrando do tempo que levei para ensinar àquela menina tudo o que ela sabe hoje. Sexo, e drogas e tudo o que é importante nessa vida de miséria e degradação.

Cinco minutos depois um outro carro estaciona e o cara baixa o vidro para me perguntar se eu atendo em grupo. Eu pergunto quantos são.

“Eu e mais dois chegados, eles estão esperando aqui perto. Levo você até lá e te trago de volta. Pagamos duzentos e cinqüenta por hora.”

Como os tempos estão difíceis e as putinhas estão surgindo cada vez mais novas, e eu sei que se recusar a proposta alguma outra vai faturar a grana, eu aceito e entro no carro. E digo que cobrarei trezentos.

E será apenas uma hora.

No caminho nós não conversamos muito, ele é o tipo de homem com um emprego e família a zelar, carro do ano e camisa engomada. Provavelmente tem uma valise no banco de trás e um punhado de canetas dentro do porta-luvas. O tipo de homem que acredita numa “trepada profissional”.

O tal lugar para onde ele me leva é um barracão atrás de uma antiga fábrica, e eu sei que deveria temer pela minha segurança. Mas, por outro lado, eu não vejo a hora de encontrar alguém que acabe de vez com essa merda. Tiro, facada ou estupro seguido de estrangulamento. Nada poderia ser ruim o suficiente para tirar o brilho de uma eternidade em descanso.

Mas o que acontece é que ele estaciona em frente ao depósito, desliga o motor e me manda descer. Depois abre um portão de ferro, nós entramos e ele o fecha novamente. Lá dentro é bem iluminado, com janelas altas e sujas de bosta de camundongos e pombos. É uma espécie de quarto gigante, sem mobília alguma além de um colchão velho posto no centro. Os dois caras estão lá, cada um vestindo uma cueca de marca.

O bom de ser uma puta é que você não precisa gastar dinheiro com roupas íntimas. Você simplesmente enfia um short surrado e vai trabalhar.

O cara que me trouxe, o tal homenzinho jovem e trabalhador, também tira as roupas e diz que está cronometrando o tempo. E fala para eu me despir.

Sim, ele diz “despir”.

Eu me movimento devagar, tirando a jaqueta jeans primeiro. É como uma dança, mas o único movimento feito é para exibir meu corpo, e o único passo realizado é dos caralhos crescendo dentro das calças.

Quando eu termino de tirar tudo, e fico completamente pelada e deitada sobre o colchão, os três vêm até mim, nus e sedentos. Um pouco ofegantes.

Um deles chupa meus peitos, enquanto outro – o cara do carro – cai de boca entre as minhas pernas, enfiando sua língua quente dentro da minha boceta. O terceiro puxa minha cabeça contra seu pau e me faz engoli-lo até as bolas.

Sabe, não que isso seja ruim ou que eu não sinta prazer algum. Mas depois de um tempo fazendo as coisas mais bizarras e obscenas por dinheiro, você se acostuma com tudo. Até mesmo ser comida por três caras em um depósito com paredes de concreto passa a ser algo convencional. Você deixa o prazer de lado e passa a pensar no dinheiro. Para aliviar qualquer dor, você dá uma cheirada antes do trampo. E uma cheirada depois. E usa a grana para comprar mais pó.

De vez em quando você acaba gozando, meio que por acidente. E recebe uma grana a mais.

Eles trocam de posição o tempo todo. Enquanto um enfia os dedos no meu cu, outro está me fodendo, e eu fico batendo uma punheta para o terceiro. Ou eu chupo seu pau, enquanto ele espera sua vez de gozar dentro de mim.

Antes de cada metida, eu fornecia para os clientes uma camisinha. Algumas tinham até sabores, ou eram extragrandes, para que se sentissem especiais. Mas eles quase nunca aceitavam usar, ou davam um jeito de furar a camisinha para sentir que fizeram o trabalho completo. De modo que eu parei de oferecer camisinhas. De modo que eu engravidei cinco vezes em oito anos.

Aborto: a salvação de uma alma ainda não maculada pelo mundo. À venda nas entrelinhas das páginas amarelas.

Os homens na realidade estão sempre querendo voltar para o útero de onde saíram. Nós abrimos as pernas e uma parte deles volta para casa por alguns minutos. A salvação da humanidade está cruzando as pernas na próxima esquina.

A trepada toda não dura mais do que quarenta minutos. Eles gozam duas vezes cada um, dentro e por cima do meu corpo. Eu finjo alguns orgasmos, gritando e gemendo, e implorando para meterem mais rápido e mais forte. Eu digo que estou quase gozando, mas a verdade é que não paro de pensar se vou almoçar em casa ou se aproveito o tempo para fazer uma hora-extra.

O ponto alto da coisa é quando o negro está por baixo de mim fodendo a minha boceta, e o cara do carro fica comendo a minha bunda por trás enquanto eu engulo a esporrada do terceiro. Eles gozam no meu cu, na minha garganta e na minha boceta.

Eu estou escorrendo por cada orifício.

Meus peitos, virilhas e lábios ficam secos e pastosos por causa da porra, mas mesmo depois que todos já se cansaram, mesmo com seus cacetes pendendo molhados entre as pernas e pedaços do colchão espalhados por todo lado, eu ainda lambo suas bolas e solto pequenos gemidos. Quando eles retomam o fôlego, nós nos vestimos e o cara me leva de volta à rua. Assim que entramos no carro ele puxa do banco traseiro uma valise preta, e me dá uma pequena gorjeta além dos trezentos combinados.

Dê seu rabo a um homem, e a generosidade dele será infinita.

Novamente parada na avenida, eu empino minha bunda e retoco minha maquiagem diante do espelho retrovisor de uma motocicleta estacionada.

Esse é meu trabalho. Essa é minha vida. Eu sou a Santa Maria Chupadora. A Madre Teresa dos Cinco Abortos. O Misericordioso Anjo Arregaçado dos Senhores.

A Nova Madalena coberta pelo esperma seco de cristo.

Isso é o que eu sou. O que eu me tornei.

Salvação para mim é vaselina.

O único milagre em que acredito é: com um pouco de fé e pó, qualquer coisa poderá entrar em você.

Qualquer coisa.

A Dama: pálida, as mãos frias depositam o revólver em minhas mãos, a pele na ponta de seus dedos descasca lentamente

Sua expressão é de tranqüilidade. Ela continua no jogo.

Eu examino a arma e apalpo a coronha melada de sangue semi-seco, nesse cubo de vidro, sangue e cimento. Nenhuma voz, nenhum movimento além do ar entrando e saindo dos nossos pulmões.

Entrando e saindo, criando uma espiral poeirenta no ar.

Entrando e saindo.

Eu não giro o tambor. Eu não sou como eles. Eu não morrerei.

Ainda não.

Eu levo a arma até minha têmpora esquerda, puxo o cão e espero até que alguém gire a ampulheta. A areia caindo, o sangue rolando e o gatilho sendo puxado.

Por um momento, eu vejo o mundo através de uma janela embaçada, como um círculo mal-formado que ainda...

Apenas por enquanto...

Não está completo...

E eu rolo um dado sobre a mesa.

No meu apartamento há fotos por todos os lados. Muitas fotos, com poucas variações. Minha vida tem sido há muito tempo uma canção de única estrofe, sem variação de tema. Um refrão repetitivo grudado atrás da cabeça. Neste lugar, todas as paredes são unilaterais.

O mundo que criamos aos poucos, aos poucos nos devora.

Ela está em todas as fotos, em todos os recortes, em cada rabisco nos papéis e rascunhos sobre a mesa.

Eu bato todas as cartas na máquina de escrever, datilografando cinco cópias exatas que serão distribuídas em breve. Cinco cartas, para cinco pessoas diferentes. Em cada uma eu escrevo as regras do jogo. O que fazer, como fazer e quando.

No rodapé da página eu escrevo: Beco do Açougueiro. 23: 55.

Eu escrevo: Siga.

Eu escrevo uma carta para cada jogador que, daqui doze horas, irá se sentar atrás de uma mesa e atirar contra a própria cabeça. Eu sou uma espécie de luz morta guiando outros para dentro do buraco que cavei.

E durante o funeral ele ergueu seu braço moribundo e arrastou os presentes para sua cova, enterrando-os junto a si e aos seus pecados.

Uma carta para cada alma condenada ao limbo:

Um padre insano.

Uma prostituta.

Um molestador.

Um traficante perturbado.

Um viciado.

E eu: o coveiro e o cadáver.

Eles: os títeres.

Eu não assino nenhuma das cartas, dobro-as duas vezes e enfio cada uma em um envelope branco, junto a uma carta de baralho. Na frente do envelope, escrevo:

“Para o Rei.”

Eu deixo a carta dentro da caixa de correspondências em frente à sua antiga casa. O jardim está cinzento, seco e coberto de latas de cerveja e restos de cigarro.

Eu escrevo:

“Para o Valete.”

Deixo a carta na recepção do motel barato onde ele está hospedado. O atendente fede a suor e urina, e tenho de deixar alguns trocados para ter certeza de que ele entregará o envelope.

“Para a Dama”, eu escrevo.

No pútrido apartamento, enfio a carta sob a soleira da porta. A fechadura foi destruída, e a porta se entreabre com o vento encanado que circula, entrando e saindo pelas frestas da madeira.

Eu escrevo no papel branco:

“Para o Ás.”

Como ele não tem endereço fixo, eu o procuro pelos bares e puteiros mais imundos da cidade. Não demoro a encontrá-lo. Quando o faço, ele está alucinado demais para digerir qualquer palavra. Por segurança, cubro parte do meu rosto com um capuz. Guardo o envelope dentro do seu bolso enquanto ele passa a mão em uma garota qualquer. Ao amanhecer, ele descobrirá a carta e seguirá para o fundo do poço junto a todos nós.

No último envelope, eu escrevo:

“Para o Coringa”, e prego a carta com uma seringa na entrada de sua casa.

O tambor gira, a arma estala, eu não morro.

Minha expressão: nada além de um rosto opaco sob a luz que pisca.

A luminária eletrifica o ar; envolve a sala na escuridão, crepita e volta a brilhar.

Eu continuo no jogo e passo o revólver para o Coringa ao meu lado.

O Coringa: um traficante cansado da vida, de lábios finos e índole destrutiva.

Ele pressiona o cano contra o queixo e alguém gira a ampulheta. Antes de puxar o gatilho, ele nos diz:

“Eu nunca quis viver para sempre.”

A areia cai.

Eu caminho pela cidade durante quase duas horas antes de pegar o caminho de casa. Ziguezagueando pelas quadras e vielas, eu vendo toda a mercadoria que tenho para os viciados, prostitutas, velhos doentes e crianças de rua que passam por mim. Em certo momento, eu me nego a aceitar o dinheiro deles ou qualquer coisa que tenham a oferecer. Eu simplesmente lhes dou sua anestesia pessoal, para que fujam de sua triste realidade como eu não posso fugir.

Eu não sou uma pessoa má, apenas sirvo como ponte entre os pesadelos íntimos dos outros e o paraíso da cocaína. Do craque. Da metadona. Eu sou a materialização carnal da política do pão e circo. O pão que alivia as dores e infelicidades escondidas nos corpos devastados que se espalham pelo asfalto no caminho de casa.

Quando não sobra mais nenhuma droga, eu sigo até meu apartamento, pensando em tudo o que foi e que não deveria ser. O que poderia ter sido, mas não foi. Todos têm um monstro guardado dentro de sim, um demônio que o devora até não sobrar mais nada. Alguns usam drogas para aliviar a dor. Outros, remédios. Se refugiam nos seus empregos, nas suas orações, na crença de que há um mundo melhor do que este para se viver algum dia. Talvez depois da morte. Mas eu...

Não tenho pelo que viver.

A minha culpa é o fogo que arde dentro de mim. Meu nêmesis. A forca em que despenho todos os dias e todas as noites neste último ano. E eu não tenho drogas, diversões ou tarefas para aliviar a dor. Tudo o que me resta é caminhar de volta para casa, tendo certeza de que o dia que virá amanhã será pior do que hoje. Sempre.

Mas quando chego ao apartamento, depois de rastejar pelo buraco escuro e fedorento que é esta cidade, eu encontro um recado pregado na porta.

“Para o Coringa”, está escrito.

Pregado com uma seringa.

Eu arranco o envelope e entro, tranco a porta e acendo as luzes. Sento no sofá. Rasgo o envelope e tiro a carta do interior. Eu leio cada palavra como se fosse um lampejo de luz. As frases são como promessas de esperança para um cadáver em vida como eu. E eu termino de ler, e releio, e leio novamente até o sol começar a aparecer por trás das janelas.

Eu leio, e leio, e leio, e leio, e leio, e leio.

No fundo do envelope há também uma carta de baralho: o Coringa, louco e sorridente.

Nesta noite, eu não durmo. Amanhã será um dia novo. O último desta vida podre, ou o primeiro de uma nova existência.

Na noite seguinte, eu estarei esperando debaixo de um poste a chegada de outras cinco pessoas, tão desesperadas e tão anestesiadas...

Como eu. Corroídas pela falta de motivação. Cadáveres em vida, sem nada a perder, sem nenhuma esperança. Destruídas e carregadas pelos seus demônios individuais.

E caminharemos os seis através de um beco, que será a metáfora do que se tornaram nossas vidas. E sentaremos ao redor de uma mesa, e apenas um sairá vivo, renascido para viver novamente.

O prêmio: redenção.

As chances são de um para seis.

E metade de mim torce para que isso acabe, essa tortura insana, esses dias vazios...

E a outra metade...

A bala voa através da cabeça do Coringa, explodindo seu queixo e jogando a cabeça para cima.

A bala: alojada em algum ponto do cérebro morto, presa para sempre entre pesadelos e memórias perversas.

O Coringa: um homem morto que morre pela segunda vez, o sangue que sai de sua boca umedecendo o tampo da mesa e a carta de baralho à sua frente. Ele está fora do jogo.

A expressão de todos é de indiferença, amargura e desilusão. Um resquício de inveja surge em cada par de olhos presentes em volta da mesa.

Nós não somos insensíveis. Somos apenas realistas demais.

O Valete: apanha o revólver da mão do Coringa, deposita uma nova bala na câmara e volve o tambor. Alinha-o. Espera até que alguém vire a ampulheta e desce a testa até a mira do revólver.

Sem fechar os olhos, ele pressiona o gatilho.

Eu a recebo no meu consultório lá pelo começo da tarde. Ela está quase meia-hora atrasada, e por algum tempo achei que não viria mais.

Meu consultório: uma pequena sala enfiada acima de um antigo mercado, já fechado, na periferia da cidade. Os poucos aparelhos são usados e já se mostram gastos, as paredes precisam de uma pintura e pelo menos duas vezes ao dia o circuito de iluminação falha.

Ela: uma garota jovem, de cabelo azul e um piercing no lábio. Ao telefone, me disse que tinha dezoito anos, mas agora posso ter certeza de que não tem mais do que dezesseis. Ela chega escondida debaixo de um capuz. Assim que eu tranco a porta ela me estende a mão com o dinheiro que negociamos.

O dinheiro: tão ilegal e sujo quanto eu, ela, nossas ações e este lugar.

Eu faço todos os preparativos, digo que ela deve tirar a roupa e se deitar sobre a maca. Ela fica calada a maior parte do tempo, abrindo a boca apenas para entoar coisas para si mesma, desconexamente. Antes de começarmos, eu lavo minhas mãos e penso em me desculpar pela falta de luvas cirúrgicas, mas acho que não faria diferença. Ela parece não se importar. Com o círculo de luz branca ardendo acima de nós e as persianas fechadas, lembro da breve conversa que tivemos alguns dias atrás. Ao que parece, uma colega qualquer passou meu número a ela. Negociamos o preço, o dia e o horário.

Aqui, agora, eu digo que faremos a coisa toda sem anestesia, como combinado.

Só deus sabe quanto custa uma anestesia geral, e garota sabia disso quando decidiu me procurar. Como um gesto da pouca humanidade que me resta, ofereço a ela dois comprimidos de Vicodin, do meu estoque pessoal. Mais do que anestesiada, ela vai ficar chapada.

Fitando a pequena bandeja enferrujada disposta ao lado da maca, ela responde que já se acostumou a toda a dor que o mundo pode lhe causar. E pede que comecemos logo, ela quer voltar para casa o mais breve possível.

Com suas pernas afastadas, depois de dilatar sua cavidade vaginal, eu introduzo ali — na sua linda, rosada e depilada vagina — um cano razoavelmente grosso e comprido, enfio aquilo até seu útero e depois inicio a sucção. Aos poucos, pedaços gelatinosos e grudentos de carne fetal vão sendo aspirados para fora. Enquanto isso, eu espero. Ainda segurando aquele tubo dentro da menina, eu espero e tento não pensar na merda da ética barata que vendem por aí nas faculdades de medicina.

Eu espero, enquanto o bebê lá dentro se despedaça e vai sendo sugado de seu útero majestoso e belo. Eu penso que, se os fetos tivessem uma faca ou arma lá dentro enquanto se desenvolvem, e se soubessem a bosta de mundo que os espera, certamente optariam por suicidar-se antes do terceiro mês.

Você passa tantos anos correndo atrás de riquezas e esperando a felicidade chegar para depois perceber que sua melhor época foram aqueles nove meses de conforto e harmonia, onde não existia emprego, depressão e rotina. Um tempo onde sua realidade não era feita de materialismo, castração social e impotência cultural. Lá dentro não existia televisão, animosidade ou fumaça.

E então você nasce para descobrir que não deveria ter nascido. E quer voltar pra lá de novo, mas já é tarde.

Quando eu termino de sugar pelo cano tudo o que é possível, apanho a cureta — uma Colher da Mutilação — e pergunto a ela se está tudo bem. Se podemos continuar.

Ela entreabre os olhos e pisca uma vez, dizendo que sim.

Com cuidado, eu enfio a cureta dentro dela e lentamente vou raspando uma fina camada de tecido uterino para fora, retirando inicialmente pedaços de crânio e cérebro semiformados, depois depositando os restos mortais do feto e generosas colheradas de sangue dentro de um recipiente de alumínio.

O Recipiente de Alumínio: um cemitério de almas não concebidas e rejeitadas.

O sangue sai dela e escorre pelas suas coxas em profusão, manchando a maca. Mas está tudo sob controle, e após alguns minutos eu mando que ela feche as pernas e relaxe, para que o sangramento cesse progressivamente. Em uma hora ou duas, eu digo, ela poderá ir embora e descansar em casa.

A garota inclina a cabeça na direção da janela, e seus olhos repousam na luz que se esvai entre as frestas da persiana.

A mesma luz que reflete nos nacos sangrentos de carne, em minhas mãos vermelhas e no maço de dinheiro sobre a bancada.

O Valete pressiona o gatilho, a arma clica e os últimos grãos de areia tocam o vidro no fundo da ampulheta. Ele ainda está no jogo. Agora restam três.

A Dama: sua expressão é de impaciência, demonstrando pela primeira vez na noite uma certa vulnerabilidade mesclada com desgosto. Não é possível dizer se ela está melancólica porque é sua vez de rodar o tambor, ou porque continua viva.

A quarta regra: 30 segundos para puxar o gatilho.

O Valete: Nosso Médico da Morte, O Doutor Infanticida da Periferia.

Nós não somos sem esperança, apenas não temos mais a inútil obrigação de viver.

A Dama não roda o tambor, aponta o cano para o centro da íris cinzenta e alguém gira a ampulheta.

Antes de puxar o gatilho, ela deixa uma lágrima fina escorrer pelo rosto, a maquiagem formando um risco preto que desce até o canto dos lábios.

Dá pra ouvir a Alice gritando lá do quarto. Ela e aquele merda de cara louco. Sádico e perturbador. Mas dinheiro é dinheiro, e cada uma tem o cliente que quiser.

Enquanto ela grita, ofega e geme, eu fico aqui arranhando minhas unhas nos azulejos do banheiro. Com uma navalha eu faço mais um corte no meu pulso ou no braço. Eu estou completamente chapada.

E anestesiada.

Ao contrário da garota lá no quarto, enlouquecendo o cara e se contorcendo e gritando, eu não consigo nem mesmo esboçar expressão alguma. Os poucos movimentos que eu faço são mecânicos e travados, e depois de mais uma cheirada os ruídos de madeira, o arrastar de unhas e os gritos vão diminuindo, ficando distante até se tornar um burburinho dentro da minha cabeça.

Então, de repente, eu estou sentada sozinha em uma sala no escuro. O banheiro está do outro lado, a quilômetros de distância. Um esqueleto vestido de terno surge do meu lado e bate o maxilar, enquanto abre o zíper da calça e tira o chapéu da cabeça. Eu me inclino na direção das suas coxas, mas tudo o que consigo encontrar são ossos brancos e lisos. Quando tento morder o ar, procurando algum músculo, a sala se inclina lentamente, na direção do banheiro distante e vazio.

O banheiro: uma porta, um vazo sanitário sem tampa e uma mulher que sangra.

O senhor esqueleto me apanha pelo braço enquanto a sala continua seu movimento, tornando-se um abismo gigantesco. Os dedos duros e finos criam cicatrizes no meu braço, e eu deslizo de sua mão esquelética pra cair por alguns segundos na direção do chão frio e úmido, até cair sobre mim mesma.

Eu abro os olhos, e os gritos pararam.

Tentando recobrar a consciência, rastejo pela fresta da porta, engatinhando até o quarto de Alice. Pelo corredor, vejo o homem caminhar e sair a passos largos do apartamento. No quarto, me agarro aos lençóis bagunçados e me arrasto para perto de Alice.

Com os olhos vidrados no teto, ela segura as mãos entre as pernas meladas e, deixando uma lágrima fina escorrer pelo rosto, fala que o tal cara louco acabou de estuprá-la.

A quinta regra: O Rei deve começar a partida.

Restam dois jogadores, uma bala; a maleta ainda lacrada sobre a mesa.

A mesa: pegajosa e quente, quase uma criatura viva que sangra e escorre pelas bordas.

A Dama: partes de sua cabeça caíram sobre a mesa e o tronco inclinado jogou uma grossa camada de tinta vermelha sobre a lâmpada acima de nós. Sua carta está manchada pelo seu sangue escuro.

A lâmpada falha, pisca e estala, projetando uma luz escarlate sobre os sobreviventes.

O Valete.

O Número 6.

Nossa expressão é de satisfação mesclada a piedade.

Eu apanho a arma caída sobre a mesa e alojo na câmara a quinta bala restante. Eu giro o tambor e engatilho o revólver. Giro o braço para cima, ajeitando o cano contra minha têmpora.

Alguém gira a ampulheta. Eu rolo um dado sobre a mesa suja.

Nós não somos descrentes, apenas não temos força para acreditar.

E eu digo para O Valete de olhos baixos à minha frente que quero lhe contar uma história...

ALICE

Havia uma garota, não muito tempo atrás...

Que perdeu sua mãe muito cedo. Não porque ela tenha morrido ou desaparecido, mas porque decidiu fugir com um de seus amantes. Fugiu para uma vida melhor, abandonando a pequena Alice com seu pai alcoólatra e agressivo.

Ela tinha dez anos.

E durante os anos que se seguiram, todas as noites seu pai se dirigiu até seu quarto no alto da madrugada e, bêbado e bufante, fez coisas terríveis ao seu corpo de criança. Ela nunca conseguiu descobrir se o pior eram os estupros violentos ou as carícias asquerosas que ele lhe fazia nos raros momentos em que estava sóbrio.

Com os remédios que roubava escondido da enfermaria da escola, ela não engravidou. E com o tempo seu mundo e sua vida foram sendo completamente anestesiados.

Quando Alice decidiu sair de casa, achava que já havia sofrido tudo o que alguém poderia sofrer por uma vida inteira. Ela tinha catorze anos quando fugiu de seu pai...

Fugiu para dentro do buraco mais fundo que foi capaz de encontrar. Passou a morar com uma amiga mais velha, uma prostituta qualquer do tipo que topa qualquer coisa por uma grana razoável ou um punhado de pó. Para ajudar a pagar o aluguel do apartamento vagabundo em que moravam, Alice também caiu dentro da prostituição, e foi somente uma questão de tempo até que também estivesse dando a bunda para qualquer marginal em troca de coca.

Ela estava percebendo que o inferno sempre pode ficar um pouco maior quando você menos espera. E quando chegou ao fundo do poço, a garota continuou cavando.

No seu aniversário de quinze anos, Alice ganhou sua primeira dose de heroína.

Quem trazia a droga era um traficante da região, um homem que se alimentava do vício daqueles ao seu redor. Mais do que vender a heroína para a garota, ele se aproveitava dela sempre que podia, até ele próprio se tornar tão apático e desesperado quanto ela. Ainda que não fosse um drogado, tornou-se um homem completamente morto por dentro.

Centenas de homens entraram e saíram dela durante todo esse tempo. Viciados, homens de negócio e homens lunáticos. Pais de família, policiais e padres. Homens violentos, sujos e doentes.

Não foi uma grande novidade quando seu exame deu positivo. Alguns dias depois, ela atendeu um de seus clientes mais recorrentes no apartamento que dividia. Um homem que se dizia ter sido um padre, até ser expulso da Igreja e ter sua vida destruída. Alice sempre o atendia em sua casa, e sempre tinha medo. E, às vezes, fazia o programa sob os olhos drogados de sua amiga, a Puta Viciada. Nessa noite, o homem não queria sexo. Ele queria uma chacina corporal. Sem largar a faca grande que trazia presa ao cinto, estuprou a garota por uma ou dez horas, gozando dentro do seu corpo violentado e fecundando um óvulo condenado.

Durante o estupro, tudo o que sua amiga fez foi ficar dentro do banheiro, completamente dopada.

Semanas mais tarde, Alice conseguiu o telefone de um ex-estudante de medicina, expulso da faculdade por roubar e utilizar frascos de morfina, e que agora fazia pequenos bicos realizando abortos em um consultório caindo aos pedaços na periferia da cidade.

Alice foi obrigada a pagar pela morte da criatura doente e monstruosa que se desenvolvia em seu interior. Para ela, o aborto foi um sacrifício. Para ele, mais um assassinato bem pago dentre tantos outros, com o qual ele alimentaria seu ócio.

Trinta dias antes de completar dezesseis anos, Alice ergueu um revólver que arranjara com um de seus clientes; um homem com quem ela dividiu a sua doença, um sujeito que nunca se perdoou por ter lhe fornecido a arma, e disparou contra a própria cabeça.

A arma estalou, explodiu e espalhou pelas paredes da sala a triste e amaldiçoada vida de Alice.

Um ano depois, seis pessoas condenadas se reúnem ao redor de uma mesa para celebrar sua morte.

Eu puxo o gatilho e a arma dispara em falso. Eu continuo no jogo.

O Valete: seus olhos refletem toda a imensa dor, culpa e sofrimento estampados nos olhares vermelhos que nos observam através das órbitas mortas ao redor da mesa.

O Rei: morto.

A Dama: morta.

O Ás: morto.

A maleta: fechada sobre a mesa.

O Coringa: morto.

A ampulheta: preenchida por flocos de areia vermelhos.

Eu passo o revólver para as mãos do Valete, ele não olha diretamente para mim. Apanha a arma gosmenta de sangue e não gira o tambor. Depois de alguns segundos ele ergue o cano na minha direção.

“Você não pode mais fugir”, eu digo.

“Aceite a sua culpa e termine o que começou a tanto tempo.”

Eu digo:

“Nós não somos suicidas, mas justiceiros de nós mesmos.”

E ele se levanta da cadeira onde está sentado.

Ninguém gira a ampulheta. E o Valete puxa o gatilho.

A arma clica, mas a bala continua lá dentro, girando lentamente e esperando seu grande momento.

A expressão do Valete é de temor crescente e angústia infinita. Ele soluça, e as lágrimas caem pesadas sobre o sangue que cobre a mesa.

As lágrimas: rubras, incandescentes; eternas.

Tentando sugar o ar abafado e morno, gritando como um bebê, ele pergunta:

“Que porra é você? É a merda de um deus, por acaso?”

Enquanto eu me levanto, o Valete rasteja pelo chão, criando pegadas.

E eu respondo:

“deus não joga dados.”

Ajoelhado no chão de cimento vermelho, ele inclina a cabeça na direção do revólver e baixa a testa contra o cano.

Antes de puxar o gatilho, ele abre os olhos e soluça:

“Me perdoe.”

E sua cabeça explode, sem vida, e cada pedaço e gota de sangue que voa é um demônio pessoal, um pesadelo interno sendo libertado.

O Valete: morto. Agora resta um sobrevivente.

A bala projetada atravessou seu crânio e estilhaçou uma das três janelas espelhadas, revelando o concreto cinzento da parede.

Eu caminho até a saída de ar e retiro a grade enferrujada da parede. No fundo do buraco eu pego uma garrafa cheia de gasolina e um isqueiro que guardei aqui na semana passada.

Depois de espalhar a gasolina pelos corpos mortos, pela mesa, pelas cartas e pelas paredes, eu derramo o resto sobre mim mesmo e sento-me novamente.

Puxo para cima as pequenas travas da maleta e a abro. Dentro, sobre recortes de jornal e fotografias, há uma caixa quadrangular aveludada.

A caixa dentro da caixa dentro da caixa.

Dentro dela, uma última bala descansa.

A sexta regra: o prêmio: redenção.

Eu coloco a bala dentro da câmara, giro o tambor e, com o revólver firme em minhas mãos, direciono o cano para minha têmpora.

Eu viro a ampulheta.

A areia começa a cair, e os grãos escarlates ressonam como trovões contra o vidro. Uma tempestade de areia. Uma chuva vermelha.

O isqueiro estala, e uma chama rebenta pelo meu braço, consumindo meu corpo, a mesa, a ampulheta, a areia que cai, o sangue que escorre, a lanterna que faísca, as fotos dentro da maleta e os cadáveres divididos pela sala.

Os vidros explodem com o calor.

O Valete,

O Rei,

O Coringa,

O Ás,

A Dama e

Eu,

Todos queimamos pelos nossos pecados, vícios e ações. Estático, o dado me mostra através das chamas o número da minha morte.

Nós não chegamos ao fim, apenas ao começo de uma inexistência interminável.

A espiral da morte, entrando e saindo a cada geração.

A lâmpada falha, queima e apaga.

Eu puxo o gatilho, a arma explode e o círculo se fecha.







(À merda com o espaço de postagem e a prolixidade textual. Eu sou um Doente, afinal.)