Acordei vivo hoje.
Medo!
Todos os dias haverá algo para impedir sua vida. Uma mãe doente. Um vício. Dor nas costas; falta de inspiração. Cansaço. Todos os dias haverá um motivo para você deixar de viver e prolongar sua dor. Um câncer. Contas para pagar. Um céu fechado que promete tempo ruim. Um dia ruim. Mais um. Todos os dias existirá um sentimento de fraqueza que o fará virar para o lado e dormir. Ligar a televisão e assistir um novo filme ao invés de fazer sua própria película. Seu auto-retrato. Uma poesia. Algo que valha a pena. Sua marca no mundo. Uma receita inovadora. Sua mão no cimento fresco da calçada. Seu pensamento na calçada. Uma idéia concreta. Sua assinatura no tempo; uma cicatriz na história. Todos os dias haverá alguém para ter pena. Uma mulher ou homem ou criança que sofre mais do que você. Uma mulher ou homem ou criança que o fará ficar com o cu na mão. Todos os dias haverá um homem para você temer. Uma mulher que roubará sua alma; uma virgem insana ou uma esposa vagabunda para ocupar sua ansiedade. Haverá durantes todos os dias um motivo para que você deixe de viver sua vida. Frustração; preguiça; medo; um jogo de futebol ou uma costura mal feita. Um engarrafamento que o deixará irritado. O ar-condicionado quebrado. Um pneu-furado. A morte de alguém ou a hora-extra no seu emprego que o deixará exaurido demais para construir algo belo. Para viajar. Para ter coragem de destruir aquilo que você odeia. Todos os dias faltará um motivo realmente significativo para lhe impulsionar a fazer o que deve ser feito. Um novo programa para distrair sua mente. Mais uma rodada de cerveja para compensar seu estresse. Mais uma. Um fim de semana para recuperar as energias. Mais um. Todos os dias haverá algo em que você se apoiar para justificar seu tempo perdido. Sufocar sua vida. Todos os dias existirá um gerente de marketing engraçado e bem sucedido para você chupar; mas ele paga seu salário. Uma desculpa para não reclamar. Uma festa para ir. Uma nova rodada. Uma liquidação imperdível que fará você adiar sua vida por mais um dia. Mais um. Uma maquiagem borrada; uma lâmpada queimada que preencherá seu tempo. Um prego para ser colocado.
Todos os dias haverá um motivo para você sair e voltar para a cama sem começar sua obra. Sem fazer o seu discurso. Sem aprender uma língua, conhecer alguém, fugir de alguém. Nunca surgirá o momento certo para você deixar de sonhar e começar a fazer. Para transformar a teoria em prática e escrever seu livro, vender seu projeto, pedir o divórcio. Comprar uma casa na praia; pichar uma parede; fumar maconha. O dia de amanhã não será mais colorido do que foi hoje. Seus problemas não acabarão. Seu tumor não ficará menor e seu vizinho insone continuará fazendo barulho durante a madrugada. Você não vai ganhar na loteria. A pessoa com a qual você se casou não irá ficar mais bonita com o tempo, e o condicionador para caspa ficará cada vez mais caro. E você continuará tendo caspa. E será sempre muito velho, muito novo, mais feio do que os outros e mais pobre e gordo demais, tímido demais ou exageradamente impulsivo. Você terá muitas variáveis para considerar, dificuldades a resolver; terá um carro caindo aos pedaços ou uma cadeira de rodas, um dente faltando, um pau ou um busto menor do que você queria, um emprego que você não queria, uma família que não queria você. Todos os dias da sua vida haverá alguém para dizer o que você deve fazer. Todos os dias você deixará de fazer o que importa. Você vai estudar, carregar, beber, conversar, cozinhar, trepar, datilografar, telefonar e descansar. Mas não irá criar seu próprio espetáculo. Você passará o dia aparafusando, buscando e contando, recontando, mas não terminará seu manuscrito jogado no fundo da gaveta. Vai assinar, converter, contratar e preencher, mas não deixará de ser seu carrasco pessoal, o estrangulador de si mesmo. Seu próprio medo, enraizado tão profundamente que já se tornou parte de você. Alimentado por você. Alimentando-se de você. Um matadouro psicológico. Todos os dias você descobrirá uma nova forma de enterrar suas expectativas. Um abatedouro de desejos. Suicídio emocional. Você se levanta pela manhã e descobre que o aquecedor estragou novamente, e desiste de pedir demissão hoje. Acha melhor esperar para mandar o seu chefe enfiar o dinheiro dele no rabo na semana que vem. Ou no mês que vem. Você vai esperar o próximo pagamento. Vai esperar o resultado do exame. Vai deixar o primeiro ato da sua peça trancada em uma pasta até o momento certo. Esperar um clima mais agradável para fazer sua viagem. Aguardar até que encontrem uma cura para o seu problema de pele. Até que a inflação diminua. Que seu filho cresça. Esperar até o fim do ano para abandonar tudo e começar a viver. Ou até o dia em que você seja demitido. Morra de Aids. Roubem seu genial projeto. Você espera até o dia em que uma bala perdida acerte a cabeça de alguém, haja uma colisão aérea ou um carro incendeie-se com o motorista dentro. A sua cabeça; o seu carro. O jato particular que leva você até seu próximo cliente. Ou o luxuoso restaurante onde, a alguns sorrisos falsos e apertos de mão de fechar um rentável negócio, você diz, recostado na poltrona de veludo, que essa será sua última conquista empresarial. Seu último contrato milionário antes de hipotecar sua casa e se mudar para outro continente. E então um homem com mais ideais, motivações e culhões que você entra no lugar com dinamite presa ao corpo e explode os clientes, os funcionários, você e o seu sucesso financeiro.
Todos os dias haverá algo mais divertido para assistir. Uma tarefa mais simples a ser realizada. Dia após dia, você descobrirá milhares de maneiras diferentes de se tornar seu próprio cárcere; sua própria fábrica de razões e fardos para não viver como deveria. Não fazer o que deve ser feito. Todos os dias você conhecerá um novo jeito de ignorar sua existência, abrir mão do seu talento e desperdiçar os anos que lhe restam. As semanas. As horas. Todos os dias haverá algo para o impedir de viver: um teste, um pai alcoólatra, um atentado. Uma tragédia no estado vizinho. Luto. Uma mancha de refrigerante no seu vestido de formatura. Sua vida não irá mudar. Não irá melhorar. Não ficará mais bela, mais rica, mais fácil e menos traumatizante. Você não deixará de sofrer. Todos os dias você poderá morrer. E todos os dias você poderá dar sentido à dor, ao sofrimento, aos estupros, às doenças, fomes e guerras do mundo; poderá valorizar cada sacrifício já realizado apenas para que você pudesse fazer o que importa. Criar sua história, deixar sua dádiva para o mundo e sentir que o poder de deus é simplesmente tudo aquilo que você deveria estar criando e destruindo agora. Matando e amando. Dando seu toque pessoal ao universo, assumindo, extraindo e modificando o que é seu pelo direito de nascença, sua assinatura na crosta da terra, em uma parede ou numa folha de jornal. Seus rosto, seu nome, seu trabalho; é o que continuará vivo depois do último dia. Seu último dia. Pode chegar daqui um ano. Dois. Dez. Ou amanhã. Ou não. Todos os dias haverá uma opção de mudar as coisas. Um motivo que será ignorado. Uma razão que você fingirá não ver. É uma questão pessoal. Uma escolha que você terá medo de tomar. Um impulso para agir. Uma deixa. E todos os dias haverá uma pergunta emoldurada atrás dos seus olhos:
Que tipo de pessoa você quer ser quando morrer?
Na verdade eu não sou um católico exemplar, mas tenho que admitir que fui uma criança católica até demais. Costumava fazer bondades, comer os meus legumes, fazer meus deveres de casa a troco de conquistar meu lugar no céu. Não sei exatamente como aconteceu, mas do nada percebi que a própria igreja era cheia de contradições. Obviamente, como toda criança, procurava respostas às minhas perguntas mais estranhas em dois lugares: As caixas de sucrilhos (sempre tinha algo construtivo) e a minha mãe (sempre tinha algo chocante).
“Mãe, por que Deus, por Moisés, nos mandou os dez mandamentos se na bíblia Deus nos dá o livre arbítrio? Mãe, por que Jesus é branco, de olhos azuis e cabelo castanho claro se o lugar de nascença dele (Jerusalém, pertinho dos judeus de merda [anedota]) só tem gente nariguda, pele parda com cabelo ruim pra cacete? Mãe, por que a igreja ganha tanto dinheiro dos velhos que cheiram a tabacaria?”.
Como a maioria das mães, sempre uma resposta insuficiente para calar uma criança: “Sei lá menino...” ou “Para de encher o saco, menino” e às vezes “Menino, levanta essas calças”. Já as caixas de sucrilhos me diziam algo diferente: “Somente sucrilhos desperta o tigre em você!” e também ”Agora com 0% de gordura”.
Um dia, quando não tinha nada pra fazer, resolvi procurar uma nova fé. Como os livros sobre este assunto estavam longe do meu alcance, recorri à única fonte de informação que alguém da minha idade tinha alcance fácil e rápido, a Internet. Primeiramente, fiz uma pesquisa por cima (wikipedia), apenas para eliminar as religiões que eu achava complicadas demais ou muito caras. As resultantes foram o Budismo, Protestantismo, Espiritismo, Catolicismo (não pesquisei por já ter dúvidas suficientes), Judaísmo ou nenhuma das alternativas (Ateísmo).
Depois de uma pesquisa rápida e dos resultados obtidos, comecei a pesquisar mais profundamente. No Budismo tudo parece ser bem relaxado e cheio de incenso de erva doce. Errado. Um verdadeiro budista vive no mosteiro acordando cedo, de cabeça raspada orando a Buda e com uma dieta especial para leveza do corpo e alma. O único templo budista que existe em São Paulo fica a uns 50 km da minha casa e nem dá pra ir de bicicleta pelo fato de não saber andar em uma. Um budista ortodoxo (o chamado modista), não faz nada do que um budista dedicado faz e simplesmente cultiva bonsai, o que não faz o meu tipo.
Com os comentários de pessoas satisfeitas e não satisfeitas eu teci minha visão do Protestantismo, como a religião do dinheiro fácil. Monte uma igreja protestante e arranje elásticos para as notas de cem que irão cair, era o que eu imaginava. Teoricamente, eu estava errado. Só teoricamente. Nunca gostei de dinheiro como forma de perdão, mesmo porquê, sou um pobre lascado que vive a base de moedas de centavos roubadas do meu pai. Sem contar que era preciso ter algum parentesco com alguém dentro da igreja para se tornar membro dela.
O Espiritismo parece algo realmente confuso, conheço gente que aderiu a esta religião, mas que não visita nenhuma igreja ou não faz nada especial para obter salvação. Até pensei que era uma religião um tanto indiferente, mas eles se assemelhavam em um ponto aos protestantes: Eles não aceitavam qualquer um em sua doutrina, pois era preciso ser indicado por alguém da mesma.
A ultima das religiões listadas por mim era o judaísmo. De cara lembrei que os judeus são conhecidos por sua fé inabalável, costumes mais conservados e pelo amor ao capital. De certa forma era verdade que eles são apaixonados por seu dinheiro o que os deixava com a fama de avarentos, mas sua fé não era mais algo exemplar. Os judeus de hoje não são como os de antigamente. O fato da sexta feira ser santa e por não ser um dia útil de trabalho os faz com que os judeus mais relapsos se tornem os mais fanáticos em questão de segundos. Sem contar que para ser aceito, mesmo com 16 anos, era necessária a circuncisão. O que? Ninguém vai cortar nada aqui! Depois de procurar uma religião, me deparei com a falta dela. O Ateísmo era a opção final. Conhecendo-me bem como conheço, sabia que não conseguiria viver com a idéia de que não há um deus para o qual não possamos recorrer ou culpar por algo errado então, descartei esta idéia também.