quinta-feira, 3 de julho de 2008

O Tratado do Siamês Castrado

Era uma vez um gato siamês. Ele vivia com seus donos - uma típica família burguesa, composta de um casal e dois filhos. O siamês gostava da sua vida, ainda que sentisse que aquela não fosse a sua vida de fato. Ele não tinha, no entanto, o desejo de circular pela cidade tal como faziam todos outros gatos. Desejava apenas ter uma companheira. Sentia-se terrivelmente só e angustiado, não conseguia entender porque para os outros gatos era tão fácil conseguir uma fêmea. A natureza seguia seu curso, disso sabia, mas achava que a natureza se esquecera dele: não se sentia parte daquele mundo burguês, nem à cidade, nem à sua própria condição de gato siamês. Estava em crise, era evidente, e não eram poucas as vezes em que preferia estar morto a continuar vivendo uma vida que não lhe parecia real.

Já havia chegado à maturidade sexual há muito tempo, mas não havia adotado o comportamento típico da espécie porque estava preocupado demais com seus pensamentos - e neste ponto, há de se explicar algumas coisas. Diferente do que se sabe (ou do que se pensa saber) os animais também pensam. O que difere os nossos pensamentos é a capacidade de abstração. Para derrubar uma fruta com uma vara de bambu o macaco precisa pensar. Mas seu pensamento não é abstrato o bastante para levar o fator do tempo em consideração: por isso, uma vez obtido o alimento, ele se desfaz da sua ferramenta, que poderia ser usada mais vezes. Mas acontece que o nosso gatinho também sofria porque seus pensamentos eram mais abstratos do que os dos demais gatos, e por isso, ele procrastinava ao invés de viver.

Chegou então o dia em que o gato siamês decidiu sair de sua gruta imaginária e pôs-se a procura de uma fêmea. Era um belo siamês, tinha lindos olhos cinzentos e seu pêlo era macio como seda -mas não era a consciência da própria beleza o que lhe dava coragem. Julgava-se, apesar do sofrimento, ou justamente por causa dele, melhor do que os outros gatos. Era como se ele estivesse um passo a frente, rumo ao que quer que eles estivessem destinados a se tornar. Ora, se os tolos macacos que não sabem reaproveitar suas ferramentas deram origem a esta coisa execrável que é o homem burguês, do que seriam capazes os gatos? Certamente de algo muito melhor, algo de que Deus finalmente se orgulhasse. Eles seriam a Coroa da Criação, e o nosso gato siamês era o primeiro dessa nova espécie. Mas este era também um defeito do gato: ele era megalomaníaco, e como todos os que sofrem desse mal, ele não tinha idéia disso! Ele queria uma companheira para completar seu vazio, para apaziguar as suas dores, para ser a Grande Mãe da nova raça, mas era justamente essa grandeza o que lhe afastava das suas fêmeas. Os gatos agem por instinto, eles miam, se cheiram, se esfregam, e então, uma vez escolhidos os amantes, eles consumam seu ato de amor. Mas o nosso gato era cordial demais, educado demais, pensativo demais: as gatas se riam dele, e ele se sentia cada vez mais solitário, e a vontade de deitar-se no asfalto e deixar que um caminhão lhe esmagasse o corpo crescia a cada dia. Todavia, o seu real infortúnio ainda estava para começar.

Os seus donos já haviam percebido o estranho comportamento que adotara (estranho aos olhos humanos, é claro) e não gostaram nem um pouco. Ele emagrecera muito, seus pêlos estavam caindo e ele passava as noites miando pelos telhados. O que para ele era um retorno às origens, a pura afirmação do ser e da sua natureza felina, para seus humanos (que eram fiéis cumpridores dos deveres e que se julgavam) aquilo tudo era uma doença. "O nosso gato entrou no cio, querida. Vamos ter de castrá-lo."

O nosso gatinho, num sobrenatural esforço otimista, decidiu crer que na verdade aquilo seria bom - não sofreria mais à procura de uma fêmea, e poderia dedicar o resto de sua vida às questões espirituais. Mas aconteceu que certo dia foi topar com uma angorá, de um apartamento vizinho, que apesar de não lhe despertar atração sexual (o que já lhe era impossível) compreendia as suas angústias! Ela também se julgava a frente de seu tempo, e que decidira, desde a mais tenra idade, que só amaria um gato que pensasse de modo tão abstrato quanto ela. Finalmente o gato siamês havia encontrado a sua consorte, mas... e agora? Gatos não são anjos: se os seres humanos não conseguem suportar uma relação amorosa puramente espiritual, sem o ato consumado, os gatos muito menos! Percebeu então a sórdida condição em que se encontrava. Tivera toda a natureza de seu ser violentada por caprichos humanos. Fora cruelmente dilacerado, mas seus donos não viam assim, porque não o enxergavam como um ser dotado de vontade, nem de pensamentos, nem de sentimentos: era um grão de areia. Um gato de apartamento burguês, que era mais útil sendo gordo e recluso do que vivendo e exteriorizando a própria essência do seu ser.


Com indizível tristeza, o Siamês Castrado deitou-se na varanda de sua amada, e contemplou o nascer do Sol, como se ele predissesse a chegada da Nova Era. Ela, refestelada no parapeito da janela, observava distante, com os olhos feridos por lágrimas, o único gato que amara em sua vida definhar e morrer.



Findou-se assim a triste epopéia do Gato Siamês.

4 comentários:

Welker disse...

Excelente. Liberdade aos animais!

Diga não a domesticação!!!

ex-amnésico disse...

南無阿弥陀仏 para o Nobel de Literatura e a presidência do ONU!!!

Anônimo disse...

Esse gato lembra alguém... =P

ex-amnésico disse...

OK, não é 'presidente', e sim 'secretário geral'.

Mas deveria ser!