domingo, 28 de dezembro de 2008
domingo, 21 de dezembro de 2008
Y, O Macaco
No início, eu fui um macaco. Minhas primeiras lembranças remetem a uma infância passada dentro do zoológico do Passeio Público de Curitiba. Jamais conheci meu verdadeiro pai. Fui criado por minha mãe junto a outros cinco macacos, a maioria vinda de distantes e variadas localidades. Uma dessas criaturas símias era minha irmã mais nova, único laço sanguíneo que tive por toda a vida além de minha mãe. Minha irmã, eles a chamavam Mimi. Nossa casa era uma grande gaiola de ferro, que foi tornando-se cada dia menor à medida que se dava meu desenvolvimento físico e emocional, de modo que lentamente me dominava a angustiosa esperança de escapar dali e alcançar novos limites, renovando assim minha simplória perspectiva de vida. Sonhava, em minha juventude, não ser detido por tão vis grades que me impediam se conquistar o mundo do lado de fora, pisar sobre o chão de areia e escalar os muros construídos para nos separar do universo dos homens. E por entre tais grades vi passar, dia após dia, crianças lambuzadas de sorvete e pais afetuosos que as levavam pela mão a um passeio inesquecível pelas entranhas de nosso lar.
Nosso lar, o Passeio Público, residência de dezenas de animais virtuosos e encantadores.
Desde cedo foi-nos ensinado, a mim e a minha irmã, pelos macacos mais velhos e, sobretudo por nossa mãe, as arrebatadoras coreografias que deveríamos realizar em dedicação aos seres humanos, que vinham nos visitar e nos assistir em troca de uma tarde de pequenos espetáculos animais. Vinham durante toda a semana, exceto na segunda-feira, quando o Passeio permanecia fechado à visitação, e em imódico volume aos sábados e domingos.
Aprendíamos tudo o que cabia aprender a um macaco; escalávamos A Grande Árvore, o único organismo arbóreo presente em nossa jaula. Sorríamos e pulávamos de um galho a outro, mostrando nossa força e destreza, emitindo grunhidos amigáveis às pessoas que por ali passavam e jamais, sob nenhuma hipótese, aceitando os alimentos que nos ofereciam, seus nacos de massa engordurada e demais petiscos que insistiam sempre em atirar para nós.
Foi desta forma que perdi minha irmã, quando estava ainda no início de minha adolescência. Tão ingênua, a pobre Mimi, apanhou entre seus dedos miúdos um pedaço de comida oferecido por um jovem perverso, enquanto o destino apoderava-se de nossa distração para findar a precoce vida de minha irmã. O assassino que a envenenou havia já àquela época sido a fonte de outros três homicídios em distintas regiões do Passeio Público: um pelicano, um canário e um cachorro, sendo este último, fiquei sabendo por meio de comentários dispersos, somente uma desavisada cadela que por ali transitava em um dia de muito calor. Este homem cruel foi apanhado em uma quinta-feira nublada, de pouco movimento, por guardas locais que o acusaram de atentado contra a natureza. Desde então, nós macacos redobramos nossa atenção quanto às entidades que por ali perambulavam nas solitárias tardes de Curitiba, aprendendo não mais truques que agradassem aos humanos, mas sim técnicas diariamente aperfeiçoadas que nos mantivessem fora do alcance de seu diabólico sadismo.
Após o sofrível e amargo período decorrente à morte de Mimi, nossa jaula nunca mais voltou a ser a mesma. Os macacos mais velhos passavam grande parte do dia se dedicando exclusivamente ao sono tranqüilo sobre a madeira de seus galhos, recusando-se a realizar qualquer peripécia que atraísse a atenção do público. Minha mãe, pobre maldita, por diversas vezes recusou-se a se alimentar das refeições que nos eram servidas ao longo do dia pelos próprios funcionários do Passeio Público, e jamais descobri se por trás desta atitude se ocultava uma ponta de receio ou uma centelha eternamente acesa de raiva. Mas não há dúvida de que os atos de todos os macacos ali presentes passaram a expressar uma inconfundível mágoa, mista de ódio silencioso, pela morte de minha irmã.
Quanto a mim, rapidamente transformei-me do símio belo e afetuoso que era em um macaco angustiado, rancoroso e desprovido de esperanças. Caí em desgraça e observei por nove longos anos, astuta e silenciosamente, o estranho mundo dos homens. Enquanto meus similares sentavam-se sobre as folhas secas e observavam as estações passarem em frente aos seus olhos cansados, sem consciência do fatídico dia que haveria de chegar para marcar o término de sua existência, eu me calei e estudei. Analisei sem pressa o ir e vir das horas e as peculiares figuras humanas que me eram apresentadas ao raiar de cada nova manhã. Despertava ao abrir dos portões, e apenas voltava-me a deitar quando o último visitante já havia se retirado. Através daquelas infames grades que me privavam do contato com a realidade externa ouvi e aprendi tanto quanto pude do dialeto humano. Quando os velhos escritores se sentavam em um banco próximo à jaula, com um livro de poesia em uma mão e uma garrafa de conhaque na outra, eu estava lá para forçar minha vista e capturar o número máximo de palavras e letras que me era permitido. Ouvia as conversas familiares e as confissões segredadas pelos enamorados que ali surgiam para marcar nos troncos com o canivete seu amor eterno. A maioria deles nunca mais aparecia. As crianças foram crescendo, e o encanto por nós, animais, morria dentro delas a cada ano que se completava. Seus pais ficaram velhos demais para as arrastarem a um passeio dominical pelo centro da cidade, e os infortunados escritores morreram de cirrose ou câncer pulmonar.
O mundo crescia lá fora, a cidade se desenvolvia e novas atrações eram criadas, enquanto nós apodrecíamos em degradante isolamento. As três refeições diárias foram substituídas por duas; uma matinal e outra noturna. Mas chegou a época em que até mesmo os funcionários estavam cansados demais para continuar sua triste rotina profissional, de modo que pediram demissão ou simplesmente a aposentadoria. Menos trabalhadores, um público menor e, enfim, uma refeição ao dia, inicialmente durante a tarde, mas logo insubordinada a qualquer horário e aplicada tal qual a vontade de seus responsáveis, de modo que chegávamos não raramente a ser alimentados uma vez a cada dois dias.
Mas o tempo soube recompensar, ainda que exigindo uma infinita paciência, as mazelas infligidas a mim e aos meus. Percebo agora, infelizmente, que esta é uma versão hipócrita dos fatos, tendo em vista que apenas eu pude ser capaz de absorver algum benefício através do sofrimento ao qual fomos submetidos, enquanto via meus pobres companheiros de cela definharem progressivamente diante de mim.
Periodicamente abastecia-me do lixo que era atirado ao chão moribundo do Passeio, caçando com meus braços esticados para fora das grades aquilo que me parecia ser de alguma utilidade. Pequenos objetos caídos acidentalmente de bolsos humanos, panfletos comerciais ou até mesmo páginas rasgadas de antigos livros que eram abandonadas por ali e trazidas até mim pelo vento. Aprendi a usar de artifícios primitivos para conquistar o que desejava, fazendo uso de galhos ou pequenos pedaços de arame para apanhar o que quer que estivesse próximo a minha jaula e trazê-los junto a mim, aprendendo de forma penosa mas frutífera o linguajar dos homens, sua simbologia e até mesmo seus desejos. Constantemente, tendo em minha posse limitados resíduos urbanos como garrafas ou carteiras de cigarros, arrancava-lhe seus rótulos e os guardava secretamente sepultados sob um buraco que arduamente escavei com as próprias unhas sob as raízes mortas d’A Grande Árvore. Ao longo das semanas, meses e anos fui reunindo ali páginas rabiscadas, imagens de logo marcas e até mesmo os mais fúteis utensílios humanos como chaveiros ou adornos simplórios da moda humana. Em diversas ocasiões, quando todos se recolhiam e os portões eram fechados, vi-me deslumbrado sob a luz do luar a correr os olhos sobre o lixo do mundo, que para mim parecia tão raro e tão complexo. Notas fiscais, moedas e listas de compras. Números, embalagens e imagens de lugares distantes. Conquistei até mesmo um calçado já desgastado, aproveitando-me de seu cadarço e o atirando novamente para o lado de fora. Contemplei tudo aquilo como se fosse uma promessa de liberdade, ecoando alto em minha mente ainda pouco desenvolvida.
E assim fui infiltrando-me na sociedade dos homens, primeiramente aprendendo o significado de seus gestos e comportamento, e depois descobrindo sua odiosa psicologia, sua amável cultura e a exuberante ironia que dava brilho às suas atitudes. Aprendi também a malícia de seu comportamento, observando idosos maltrapilhos masturbando-se, dissimulados, enquanto observavam jovens amantes apaixonados em um banco próximo ao lago. Descobri seus vícios atentando para os sombrios seres que realizavam, naquele antro de decadência, seus ilícitos negócios em um aperto de mão. Deparei-me com a invasão noturna ao Passeio Público levada a cabo por um garoto e sua parceira, seguida de seu acasalamento na ponte suspensa sobre o lago esverdeado e fétido próximo a minha jaula.
Eu vi como era tentador e sórdido o mundo dos homens.
E, como haveria de ser, descobri também a solidão. O vazio e a inquietação da alma, a falta de sentido que permeia a existência, seja ela símia ou humana. Eu compreendia a linguagem dos homens, e os ouvia falar sobre deus. Fé. Prazer. Palavras que para mim acarretaram em infindáveis tormentos, noites
Dois dias atrás deparei-me com uma caneta esferográfica abandonada ao lado de minha jaula. Apanhei-a com aprimorada discrição e, horas depois, durante a madrugada que se abateu sobre nós, Os Animais Aprisionados e Esquecidos do Passeio Público, pus-me a redigir, com toda a velocidade permitida pela ausência de meu polegar opositor, o primeiro e último escrito de meu próprio cunho durante toda esta miserável, porém curiosa, existência.
No momento presente, próximo ao raiar do sol, findo aqui minha breve biografia, que bem será meu epitáfio, e dirijo-me ao topo d’A Grande Árvore onde já me espera o desbotado cadarço que mantive por tanto tempo guardado, agora caprichosamente amarrado ao galho mais alto, pendendo em um laço perfeito em direção ao solo. E é nessa forca bestial que logo mais encontrarão meu corpo suspenso, frio e morto, balançando ao ritmo do vento da primavera e finalmente livre das angústias mundanas, das grades, das mesmas refeições de todos os dias, do sofrimento e, acima de tudo, liberto para decidir sobre o curso de meu próprio destino...
quarta-feira, 17 de dezembro de 2008
Fim
domingo, 14 de dezembro de 2008
Livre associação
quinta-feira, 11 de dezembro de 2008
A Grande Conspiração
Matem Y
Aquele filho da puta
Que veio ao mundo
Nos arrastar para o fundo
Desarmem-no agora
Antes que se levante
Que concretize a profecia
Que destrua a poesia
Matem aquele monstro
Com balas ou facas
Ou tochas ou rimas
Arranquem sua cabeça
E joguem fora suas tripas
De bucólico inveterado
De ancião recém-nascido
Quem tiver culhões
Atire a primeira pedra
Direto nas costas
Dessa criatura de merda
Que veio para nos salvar
E redimir e ofender
Matem-no hoje, agora mesmo
Enquanto ele ainda pode morrer
Soltem em seu encalço
Os cães do Inferno e do Paraíso
Fodam com ele
Ou estaremos fodidos
Matem Y
Este Arlequim do Pandemônio
Para salvar nossos filhos
Para vermos sem sermos vistos
Enquanto ele existir
Nossas ruas serão sujas
Embriagadas, ensangüentadas
Letradas e imundas
Matem Y
O Último Maldito
Que roubou nossas mulheres
Que manchou nossos lençóis
Filho da puta como é, pode até já estar entre nós
As Luzes da Cidade
O sol está se pondo quando eu chego ao parque. Horário de verão. Devem ser umas sete e pouco da tarde, o momento do dia em que as nuvens parecem se dissolver e o céu ganha uma coloração nostálgica, deprimente, meio alaranjada como a chama de uma vela prestes a se apagar. Meio avermelhado como se prenunciasse atos violentos e sórdidos. Pela janela do carro eu quase posso ver o pecado começando a tomar conta da cidade. As primeiras estrelas despontam, opacas, como cacos de um sol despedaçado, esforçando-se para brilhar. Minha avó costumava dizer que as estrelas eram os olhos de deus vigiando nosso sono.
Mas essa noite será nublada.
Eu fico dentro do carro, estacionado entre as árvores, observando o gramado à frente e vigiando as pessoas que vêm e vão, correndo, gritando, conversando e sorrindo. Admiráveis pessoas desprezíveis com seus animais de estimação, com suas roupas coladas ao corpo e suas toalhas de piquenique. Com seus sorrisos plásticos e toda a saúde do mundo. Mas nenhuma delas está marcada, por isso apenas espero.
Mantenho os vidros enegrecidos do carro fechados e o aparelho de som desligado. Hoje não é um dia de música. Já não é mais dia. O sol foge finalmente para trás do bosque, escondendo-se do mundo. O lago se torna negro demais para refletir qualquer coisa além da própria escuridão. A noite chega, e eu não acendo os faróis. Os postes se acendem a cada quinze metros, como vagalumes estáticos de três metros de altura. Algumas pessoas vão embora, outras ainda ficam, e enquanto isso luzes se acendem dentro das mansões ao redor do parque. Mansões construídas em cima de segredos podres e milionários, escondidas atrás de muros farpados e impenetráveis.
Eu desço do carro e respiro o ar fresco do crepúsculo. No porta-malas pego a Bailarina, guardo-a comigo e inicio minha caminhada. As luvas de couro me protegem do frio, mas ainda assim preciso apertar o sobretudo contra o peito para que o vento não pareça tão cortante. Como um bom cidadão, eu ando sempre sob a luz dos postes, seguindo pela pista de corrida que contorna todo o parque. Meus lábios estão secos e rachados, passo minha língua sobre eles e a pele áspera chega a me machucar. Caminho por cerca de cinco minutos até encontrar alguém. Uma mulher. Velha. Ela anda a passos largos, vindo em minha direção, apressada. Eu a observo atentamente, mas não há marca alguma nela. Continuo caminhando, e quando a velha passa por mim levanta no ar um cheiro horrível de perfume barato e cigarros, o tipo de cheiro que gruda no cabelo e nas roupas. Ela vai embora e eu mantenho o ritmo do meu andar, movendo os olhos em todas as direções, observando cada vulto, absorvendo todos os sons. Alguém dá a partida em um motor V8 longe daqui. Os mosquitos sibilam em torno das lâmpadas, silhuetas se movem do outro lado do lago.
Risadas.
Eu ouço risadas.
Alguns metros adiante abandono a pista e sigo pelo gramado, onde a penumbra me envolve como um uniforme de guerra. Eu caminho sem pressa, sentindo a pulsação regular do meu coração e o frio que sobe por dentro das mangas do casaco. Mesmo assim, eu não tremo. Minhas pernas e braços estão firmes. Eu estou no controle.
Seguindo as risadas, caminho para dentro do bosque, onde as árvores começam a enroscar seus galhos umas nas outras, fechando a vegetação. O borbulhar da água de um riacho próximo lentamente ganha volume. Eu continuo seguindo as risadas, enquanto a escuridão se torna cada vez mais densa. Antes mesmo que eu os encontre, sei que são um casal. O homem fala pouco, tem uma voz grave e macia. Ela não. Sua risada é rascante, nervosa, típica de uma garota jovem e impulsiva. Descontrolada.
Eu os encontro sentados próximos ao riacho; um ao lado do outro, de costas para mim. Sua conversa e o riso histérico da garota abafam o som dos meus passos sobre as folhas e os galhos quebradiços. Mantenho-me escondido entre as árvores a uma distância de nove ou dez passos. Observo os dois sem demora, prestando atenção a todos os detalhes. E então, eu vejo...
A marca.
É como se tivessem tinta fosforescente espalhada por sua pele, ou grandes alvos circulares pairando acima de suas cabeças. Suas almas, seus corpos, seus gestos os identificam do mesmo modo que um sinalizador disparado em um quarto escuro.
Eles brilham na noite, e eu sei o que deve ser feito.
Meus dedos enluvados envolvem a Bailarina dentro do bolso. Eu a trago para fora, roçando o metal contra o tecido. Eles riem. Eles estão marcados. A Bailarina se ergue na escuridão da noite, linda e precisa, uma extensão do meu braço. Mentalmente, digo a ela o que fazer. Prendo a respiração. Deixo que ela escolha quem será o primeiro.
A garota.
Nós somos um só quando eu puxo o gatilho e o trovão do disparo se espalha pela mata. A cabeça da garota explode em um festival vermelho. Por um momento há silêncio, e o jovem precipita seu olhar para dentro da floresta. Para mim. Eu estou olhando dentro dos seus olhos quando atiro pela segunda vez, e minha preciosa Bailarina não me decepciona. Um tiro perfeito, no topo do crânio, uma obra de arte impecável.
A cada vez que puxo o gatilho dou vida a um clarão infinitamente belo e fugaz.
Meu coração não dispara, e minhas mãos não tremem. A Bailarina cospe pelo cano quente sua fumaça voluptuosa, que dança com o vento até se dissipar.
Minha Bailarina. Minha artista.
Depois de guardá-la eu recolho as cápsulas caídas no chão, tiro uma foto de cada um dos corpos e uma terceira enquadrando ambos. E vou embora.
Faço o caminho de volta na mesma velocidade. Um cachorro me segue por metade do trajeto, abanando o rabo atrás de mim. Mesmo depois que alcanço o carro, devolvo a Bailarina ao porta-malas e dou a partida, mesmo quando acelero pela rua para fora do parque, ainda posso vê-lo pelo retrovisor, sacudindo sua cauda para ninguém.
No primeiro semáforo fechado abro o caderno em cima do meu colo, e iluminado pela luz escarlate do sinaleiro rabisco sobre a folha: “
Está ficando cada vez mais fácil. Mais brilhante. Mais irresistível.
E, como eu disse que aconteceria, essa foi uma noite nublada. Mas sempre é.
terça-feira, 9 de dezembro de 2008
Pequeno Gafanhoto?
E dizem que o bom aluno supera o mestre...
terça-feira, 2 de dezembro de 2008
Me Fode, Tédio (e goza nos meus sonhos)
O relógio bate, e o mundo espera que eu faça alguma coisa.
E eu faço. Arquiteto magníficas punhetas, realizo jornadas épicas do quarto para a sala, fotografo mentalmente o olhar depressivo que me encara no espelho, releio todos os livros que já li e embarco em viagens fantásticas de sono profundo patrocinadas pelo Barão Dramin.
Os ponteiros correm, perseguindo a si mesmos interminavelmente.
A paisagem lá fora muda pouco. Aqui dentro não muda nada. Passo o dia inteiro esperando um desastre, uma epifania, um telefonema. Nenhum deles chega. Eu espero deus bater na minha porta e dizer qualquer coisa, espero a iluminação, eu espero que meus dentes e cabelos caiam e espero cair na cova. Eu passo meus dias aguardando, seja o que for. Pelo tempo que estou esperando deve valer a pena.
Os céus escurecem anunciando a chegada da imponente madrugada, mãe dos bêbados, saqueadores e pervertidos. Dos molestadores e dos molestados. Minha mãe, que me alimenta em seu seio murcho e velho, o mesmo seio que talvez tenham abocanhado Leminski e Trevisan. E enquanto todos têm seus nomes inscritos com letras douradas nas capas de revistas, nos mausoléus de mármore e na porra da Grande História do Mundo, eu continuo sendo somente Eu, obrigado a carregar o próprio peso e a pensar sempre os mesmos pensamentos, incapaz de não ser eu, de ser outro, destinado à desprezível resignação que finca seus dentes na jugular dos fracos, dos inúteis e imprestáveis, daqueles esquecidos pelo mundo, e dia após noite, noite após dia, sorve de mim a inspiração, a alegria, meu sangue e meu tempo, sugando-me com tamanha devoção que sou levado a redigir o pior dos contos, o pior dos poemas, e narrar para as baratas em meu ombro a triste rotina de Eu, uma história curta demais para se tornar um romance e muito longa para ser vivida.
Ao cair da noite os pássaros fogem e as corujas despertam, e enfileiradas ao longo do galho observam-me distantes, trocando risadas entrecortadas e com seus gordos olhos amarelos vislumbrando meu rosto atrás da vidraça do mesmo modo que se observa um animal engaiolado, alimentado mas faminto.
As horas passam, ocupadas em construir o tempo, e o tempo tão ocupado em me destruir vai passando sem que eu construa nada, Eu, desperto madrugada adentro, adormecido por dentro, atravessando sozinho o deserto da noite e me afogando no oceano do isolamento.
Eu.
Eu...
eu...