sábado, 12 de julho de 2008

Um episódio de conversão

Em uma fazenda no interior de Minas Gerais vivia um bonachão; era ele o embaraço de sua família que, sem ser particularmente beata, esforçava-se ao menos em manter tais aparências. Já o nosso bonachão pouca atenção dava a tais costumes; entre rinhas de galo, botecos e casas de tolerância passava alegremente sua vida, sendo mesmo pessoa simpática e querida, apesar de seus vícios.

Certa manhã logo ao alvorecer, quando voltava para casa por uma estrada de terra após uma de suas costumeiras noitadas, aconteceu dele notar uma figura acocorada rente à cerca que delimitava a propriedade à sua esquerda. Ao passar por ela, sentiu os cabelos arrepiarem e o sangue gelar nas veias: era uma criatura de não mais que um metro de altura, de pele marrom, grandes olhos vermelhos sem pálpebras numa cabeça desproporcionadamente grande para o resto do corpo e ornada de três protuberâncias, como que chifres. A coisa olhava tristemente para ele (ou assim pareceu-lhe, quando veio a pensar nisso posteriormente); no momento, com o coração a sair-lhe pela boca, a única coisa que pôde fazer foi sair em desabalada carreira, invocando sem voz o nome de Deus, Jesus Cristo e de todos os poucos santos que conhecia, e desta maneira chegou em casa, mais morto do que vivo.

Crente de que havia avistado o Diabo, daquele dia em diante mudou radicalmente o bonachão, abandonando as rinhas, botecos e prostíbulos e trocando-os pelas igrejas, novenas e constantes leituras da Bíblia Sagrada; ganhou assim sua família mais um membro digno de seu respeito e admiração (ainda que já não tão simpático como antes), que não se furtava a contar a história de sua conversão a quem se dispusesse a ouvir, sem saber o que se passara naquela estrada, depois de sua partida...

A estranha criatura acocorada ainda olhava o bonachão desaparecer numa curva do caminho quando uma alva luz surgiu por trás dela; sem se voltar, pergunta com voz áspera e tom zombeteiro:
- “E então, que tal”?
E uma voz maravilhosamente suave e musical, posto que aterradora se fez ouvir:
“- Cumpriste o que te fora ordenado, puseste mais um filho de homem no caminho da Santa Igreja do Senhor. Haverás de ser chamado para prestares outros serviços desses, ainda.” E, com tais palavras, a luz se tornou mais intensa e então desvaneceu-se, anunciando a partida do anjo.

Sozinha na estrada, a criatura acocorada já não tinha mais tristeza no olhar: os grandes globos vermelhos brilhavam de malícia...

“- Sim, prestar-lhe-ei este serviço outras vezes, quantas você quiser! O prazer é meu em fazer perder as almas dos homens empurrando-os para essa 'santa igreja', nossa de corpo e alma, meu pobre cego!” - pensou, enquanto se desfazia em espirais de negro fumo infernal...

3 comentários:

Welker disse...

Já ouvi histórias muito parecidas com essa nos programas de descarrego das madrugadas, mas nunca reparei na importância do Diabo para a cristianização das pessoas.

Espero que ele não se sinta magoado.

ex-amnésico disse...

"Existem dois diabos
Só que um parou na pista:
Um deles é do toque
O outro é aquele do exorcista..."


Afinal, se não houver um tentador não há necessidade de um salvador, não é mesmo?

A propósito, esse conto é baseado (excetuando o encontro final) num fato supostamente real.

P.S.: Tudo o que eu queria da vida era ser apócrifo! Ethan!

Isolado disse...

Quem come osso, sabe o cú que tem...!