sábado, 31 de maio de 2008

Abandono

Primeiro serrou a pele de um dos braços com uma velha faca de cozinha que encontrara na gaveta. Começou a rabiscar a palavra “amém”, apenas por gostar da sonoridade. Mas decidiu substituir a terceira letra e escreveu “amaldiçoado”. Misturou Whisky e Tequila, despejou em 8 copos pequenos e tomou uma dose. Quando já havia escorrido sangue o suficiente para pintar o chão de seu velho apartamento, tomou mais uma.

Segurou o cutelo acima da cabeça e decepou dois dedos do pé esquerdo, primeiro o maior. Depois o menor. Ouviu falar em algum lugar que os dedos mindinhos dos pés eram responsáveis pelo equilíbrio do corpo, mas depois de ter virado mais uma dose já sabia que não poderia se equilibrar novamente por algumas horas. Estava gostando do sofrimento, levando a própria destruição a um novo patamar além do álcool, do tabaco, da prostituição e da bebida. Cortou fora de uma só vez 4 dos cinco dedos da mão esquerda. Sentiu raiva por um momento e lançou o cutelo na parede, esperando que ficasse fincado lá. Desapontamento. Ele quicou nos tijolos semi-expostos, chacoalhou no assoalho e ficou parado lá. Porra de cutelo.

Tentou tirar os cabelos loiros dos olhos, que se emaranhavam na cara enquanto ela tomava mais uma dose. Os dedos fantasmas apenas sujaram os fios de sangue deixando-os ainda mais gosmentos e sujos. “Que comédia”, murmurou. Uma vez. Duas vezes. A terceira. Uma quarta dose daquela mistura ácida de bebida e sangue, garganta abaixo; garganta adentro.

Com uma lâmina de barbear corta as pálpebras, para que seu instinto não possa lhe negar o prazer daquelas imagens. Apanha doze comprimidos de uma cartela de remédios, deposita na boca de seis em seis e despeja mais duas doses. Está sentado no chão, meio de lado. Cabelos pingando de suor, pegajosos e úmidos. Sangue por todo lado. Mas que merda, pensa. Que grande merda. O ser humano é frágil demais. Fraco demais. Quebradiço e sensível e repugnante e vulnerável demais. Ela precisa sentir todas as extensões de seu ser. Tudo aquilo que pode ser destruído ou quebrado dentro e fora dela deve ser destruído e estilhaçado. Reduzido a pedaços. Dor e sofrimento. Nacos de carne. Não, aquilo não é suficiente. Precisamos superar isso, temos de nos levar ao nosso próprio limite e trespassá-lo para podermos rir na cara de Deus e dizer que brincamos e rimos muito, e gozamos enquanto sentíamos a alma ser arrancada do peito através de furos de balas, a vida esvaindo-se por buracos de facas na pele escorregadia. Pecamos e achamos muito bom. Aquilo não é suficiente, não. É somente o começo. “O começo do fim”, diz ela.

.Manual Prático Para 16 Versos

Insira aqui um verso introdutório

Que será provavelmente o único

De real valor e significado

Junte algumas palavras

De modo a formar uma frase

Com sentido obscuro

E possivelmente subversivo

Despeje neste verso

Uma breve declaração

Para alguém que nunca a lerá

Pense em alguma canção popular

Da década passada

E então finalize o verso

Com qualquer rima barata

Escreva exaltadamente nestas linhas

Sobre um amor perdido

E as mágoas eternas em sua alma

Descreva também sua posição

De inferioridade diante do mundo

Expondo sua imperfeição interior

E necessidade de afeto

Fale sobre si mesmo gloriosamente

Na terceira pessoa do plural

Procurando dissimular sua insegurança

Declame agora sua amargura

Para com todos aqueles

Que são melhores que você

E seu desejo de ser outra pessoa

Escreva sobre um terrível ser

De características bizarras

Que irá chacinar a todos

Nas próximas linhas é preciso

Que haja uma grande prolixidade

Enquanto você ouve músicas

Potencialmente inspiradoras

Discurse sobre a morte e a arte

Aproveitando para falar sobre flores

E uma dose moderada de autoflagelo

Derrame palavras soltas

De significado pouco conhecido

Que você descobriu acidentalmente

E ainda não teve chance de usá-las

Tente apresentar uma falsa noção

De criatividade e inovação

Criando um parágrafo de cinco linhas

Imaginando que a desestruturação

Será reconhecida como genialidade

Diga que você arde como o sol

E use uma metáfora simplória

Sobre fogo e redenção

E a insatisfação de ser diferente

Neste verso discorra sobre sangue

A falta de sentido da vida

E como você odeia convenções

Aqui copie um trecho

Levemente adulterado

De um livro famoso

Escrito no século XIX

Fale sobre janelas e tristeza

Sobre o canto de um animal qualquer

E suas cicatrizes emocionais

Escreva a respeito de sua exclusão social

Perturbação mental

E fracasso sentimental

Fingindo que a rima é apenas acidental

Narre as angústias de um ser indefinido

Esperando que daqui muitos anos percebam

Que o verso falava sobre você mesmo

Se faz necessária nesta parte

A inclusão de frases desconexas

Que possam lhe dar a esperança

De um dia ser considerado brilhante

Discurse sobre olhos e sonhos não realizados

Faça uma pergunta sobre o coelho branco

E diga como está cansado de tudo

Registre aqui um verso mórbido

Insinuando seu possível suicídio

Afirmando sua vasta desilusão

Com o rumo da humanidade

Cite alguns nomes de grandes artistas

Poetas e pintores vendidos em comerciais

Finja saber de quem está falando

Conclua seu poema repetindo os versos iniciais

Desesperadamente se esforçando para crer

Que você é apenas um escritor fora de seu tempo

E não um fracassado sem talento algum

Agora insira reticências...

domingo, 25 de maio de 2008

Monologando

Eu costumo, desde de tenra infância, falar sozinho; isso pode parecer aos que ocasionalmente me observam algo impróprio, senão triste (pois, em sua ordem de valores, o humano vem depois do conveniente). Não obstante, minha experiência demonstra, dadas as possibilidades de conversação normalmente disponíveis na minha vizinhança imediata, que conversar comigo mesmo é a maneira mais eficaz de manter um diálogo interessante e sobretudo proveitoso. Tal como eu começo a fazer aqui; avante, pois!

Sendo o feliz (ou infeliz, conforme as circunstâncias dadas) possuidor de uma mente hiperativa, sinto a constante necessidade de falar a respeito das variadas idéias que me ocorrem, sejam elas dirigidas a qual ou tal tema; assim surgem minhas primeiras dificuldades de comunicação com meus semelhantes: tendo eles seus próprios pensamentos e preocupações com que lidar e sendo esses, via de regra, diferentes de minhas incessantes locubrações, resulta de dificilmente surgir daí algo remotamente parecido com um diálogo. Ao contrário: o que costuma acontecer é o afastamento de meus intentados interlocutores (deles somente, visto que eu tenho o costume [injusticável e irritante, admito] de perseguí-los enquanto tento provocar seu interesse no que digo).

Que não se pense porém que eu seja um monomaníaco egoísta, incapaz de se interessar pelo que os outros têm a dizer, não é o caso; sou um bom ouvinte por índole, um psicólogo e antropólogo por amor à natureza humana, que o digam os meus amigos de longa data (não me venham desmentir agora, malditos!).

O que costumeiramente acontece é que, tendo eu interesses um tanto abstratos e aparentemente divorciados da realidade imediata (tanto de meus semelhantes quanto minha, diga-se), a troca de idéias resulta um tanto difícil, quando não impossível. Essa minha tendência à abstração me leva a formular conceitos, de preferência a comentar fatos; e me parece que a maioria dos meus interlocutores (se por índole ou por formação não saberia dizer) prefere se ater aos fatos; não estou querendo dizer que sou a única pessoa dotada de reflexão no mundo. Apenas tenho a impressão, ilusória certamente, de que meu modo de pensar caminha um passo adiante dos da maioria.

(...)

Um momento! Por que tantas justificativas? Eu simplesmente penso demais para o padrão admitido e ponto final. Minha mente não comporta em si tais pensamentos e eles extravasam por onde podem. E durma-se com um barulho desses!

Ponto final?

sábado, 17 de maio de 2008

Meu amor:

Esse foi o nosso derradeiro encontro e isso será bom, assim o sabemos. Libemos nossa paixão com o sangue rubro da videira vilipendiada pelo amor ao próximo e pela carne do Salvador de escravos. Cuspamos nos sonhos róseos: nosso relacionamento alcançou uma intensidade que não admite menos que o seu final; e que ele seja tão glorioso quanto o foi nossa história quase chega a ser nosso dever (como se a nós se aplicasse tal conceito!). Eu te tirei tudo que me foi concebível arrancar; tu me deste o que era improvável conceder. Nós não esgotamos as possibilidades humanas, é certo; mas, com Satanás por testemunha, chegamos ao limite que o amor pode chegar. E isso foi bom.

Agora chegou a hora de retribuir ao mundo tudo o que ele não nos deu: rancor, a carne branca e uma faca.

Como a leoa, que lambe amorosamente seus filhotes com a mesma boca que assassinou as crias de sua rival, lambo o fígado recém extraído de teu amorável corpo, delícia inefável!

A partir de hoje és deusa e cloaca de deuses; teu sangue será o sacramento que buscarei até que o Verme Devorador cobre meu tempo neste chão sujo.

E isso é bom...

quarta-feira, 7 de maio de 2008

O suicida

Ele gira lentamente e a seu rosto, tombado de lado, se apresenta uma inóspita paisagem: nenhum chão abaixo, nenhum céu acima, nenhum horizonte a sua volta. Seus pés não encontram apoio seja a um centímetro, seja a um milhão de quilômetros de distância; a corda que suspende o corpo muito magro pelo pescoço estende-se indefinidamente desde o inalcançável.

Seus olhos estão fechados; sua mente, tão vazia quanto o lugar em que está.

Surge então na distância uma sombra; vaga, poderia ser a sombra de um homem, poderia ser a sombra de um anjo. Silenciosamente, ela se aproxima dele e interpela:

- Que fazes nesta desolação?

Não há resposta.

- Fala comigo; és cadáver, isso é bem certo. Mas não serei eu sombra, a quem os sábios das Idades sempre negaram voz, e todavia falo? Dize-me pois, que fazes nesta desolação?

- Estou morto.

- Como morreste?

- Estrangulei-me.

- Por que fizeste tal coisa?

- Porque a vida me era insuportável.

- E por qual razão?

Um longo silêncio precedeu a resposta:

- A Vida se me revelou uma farsa, um jogo de ilusões: tudo que almejei, não pude conquistar; todos a quem amei, acabei por perder; todos os meus sonhos morreram como espuma na areia da praia. Eu vi a Vida por traz de sua máscara de atividade e esperança e só havia o Vazio; e o que mais me feriu foi ver que todos insistiam em continuar com a grande Mentira, como se ela levasse a algo mais que o desespero no final. Pus fim a mascarada: mergulhei no Nada.
Agora, vai-te daqui; deixa-me não-ser...

- Não obstante, tu ainda és - retorquiu a sombra.

- Não! - exclamou ele - Tu mentes, e eu já não existo! Deixa-me!

- Engana-te - insistiu a sombra - Olha ao teu redor.

- Não!

- Olha! A azáfama da Vida veio te perseguir ainda aqui!

- É mentira!

- Abre os olhos e vê por ti mesmo.

Ele não quer ver, quer apenas continuar vácuo e inércia. Ainda assim, lentamente seus olhos ressequidos se abrem. E atônito, ele se vê no centro da Vida palpitante, de uma forma como nunca se vira: não apenas as coisas visíveis estão ao seu alcance, mas as ocultas: as intenções, as possibilidades. Os recônditos processos da existência se mostram claramente a seus olhos; com isso descobre que suas ambições, com mais um mínimo esforço estariam ao seu alcance; o amor, que não sabe dar-se por vencido, prestes a voltar a preencher sua solidão; seus sonhos, realizados ou não, impulsionando sua vida rumo a Eternidade. Desesperado ele grita:

- Não! Não pode ser! Não!

Ao que a sombra responde:

- Sim! Agora sabes tudo o que deixaste para trás; isso tudo estará para sempre aqui, ao pé de ti, para que apenas o contemples, já que não podes mais tê-lo...

- NÃÃÃÃÃÃÃÃÃOOOOOOOO...!

Inútil protestar; ele foi deixado com o fantasma da vida que recusou. E o Demônio, abandonando o disfarce de sombra, se afasta com um sorriso zombeteiro no rosto.

domingo, 4 de maio de 2008

Sem Cu

Era uma vez um bebezinho que nasceu sem cu. Ele não evacuava já fazia uma semana, e todos achavam estranho. Foi quando finalmente notaram o seu... defeito de fábrica, e avisaram aos médicos. Com um bisturi, o cirurgião fez uma pequena incisão entre as nádegas do bebê. E imediatamente, numa furiosa explosão contida, os aventais da equipe médica ganharam tons marrons esverdeados e uma fragância pútrida envolveu a sala. Agora seus pais gastam uma fortuna com fraldas, e a criança está exposta à crueldade dos aliens de Alfa-Centauro.*





Deus, a vida é uma merda.




*Trecho de diálogo extraído de O Sistema:
- Os aliens de Alfa-Centauro... eles... enfiam sondas na gente.
- É, eles enfiam sondas e não ligam no dia seguinte. Isso magoa.