Ele gira lentamente e a seu rosto, tombado de lado, se apresenta uma inóspita paisagem: nenhum chão abaixo, nenhum céu acima, nenhum horizonte a sua volta. Seus pés não encontram apoio seja a um centímetro, seja a um milhão de quilômetros de distância; a corda que suspende o corpo muito magro pelo pescoço estende-se indefinidamente desde o inalcançável.
Seus olhos estão fechados; sua mente, tão vazia quanto o lugar em que está.
Surge então na distância uma sombra; vaga, poderia ser a sombra de um homem, poderia ser a sombra de um anjo. Silenciosamente, ela se aproxima dele e interpela:
- Que fazes nesta desolação?
Não há resposta.
- Fala comigo; és cadáver, isso é bem certo. Mas não serei eu sombra, a quem os sábios das Idades sempre negaram voz, e todavia falo? Dize-me pois, que fazes nesta desolação?
- Estou morto.
- Como morreste?
- Estrangulei-me.
- Por que fizeste tal coisa?
- Porque a vida me era insuportável.
- E por qual razão?
Um longo silêncio precedeu a resposta:
- A Vida se me revelou uma farsa, um jogo de ilusões: tudo que almejei, não pude conquistar; todos a quem amei, acabei por perder; todos os meus sonhos morreram como espuma na areia da praia. Eu vi a Vida por traz de sua máscara de atividade e esperança e só havia o Vazio; e o que mais me feriu foi ver que todos insistiam em continuar com a grande Mentira, como se ela levasse a algo mais que o desespero no final. Pus fim a mascarada: mergulhei no Nada.
Agora, vai-te daqui; deixa-me não-ser...
- Não obstante, tu ainda és - retorquiu a sombra.
- Não! - exclamou ele - Tu mentes, e eu já não existo! Deixa-me!
- Engana-te - insistiu a sombra - Olha ao teu redor.
- Não!
- Olha! A azáfama da Vida veio te perseguir ainda aqui!
- É mentira!
- Abre os olhos e vê por ti mesmo.
Ele não quer ver, quer apenas continuar vácuo e inércia. Ainda assim, lentamente seus olhos ressequidos se abrem. E atônito, ele se vê no centro da Vida palpitante, de uma forma como nunca se vira: não apenas as coisas visíveis estão ao seu alcance, mas as ocultas: as intenções, as possibilidades. Os recônditos processos da existência se mostram claramente a seus olhos; com isso descobre que suas ambições, com mais um mínimo esforço estariam ao seu alcance; o amor, que não sabe dar-se por vencido, prestes a voltar a preencher sua solidão; seus sonhos, realizados ou não, impulsionando sua vida rumo a Eternidade. Desesperado ele grita:
- Não! Não pode ser! Não!
Ao que a sombra responde:
- Sim! Agora sabes tudo o que deixaste para trás; isso tudo estará para sempre aqui, ao pé de ti, para que apenas o contemples, já que não podes mais tê-lo...
- NÃÃÃÃÃÃÃÃÃOOOOOOOO...!
Inútil protestar; ele foi deixado com o fantasma da vida que recusou. E o Demônio, abandonando o disfarce de sombra, se afasta com um sorriso zombeteiro no rosto.
quarta-feira, 7 de maio de 2008
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4 comentários:
Eu sempre imaginei o Inferno dessa forma. isto é, o Inferno no sentido purgatório. Porque o Inferno cristão é uma verdadeira sociedade alternativa.
Como eu li em Stephen King, 'o Inferno é repetição'; isso costuma dar voltas à minha cabeça, durante a noite...
Já o Inferno cristão parece um lugar interessante (sem contar que todos os nossos heróis e melhores amigos seguramente estarão lá!) hehehe!
É man...,esta vida é bela e muito louca, apesar de tudo, mesmo porque,se tivessemos tudo que queriamos, se todos nossos projetos dessem certo, esta vida ia perder a graça !
Eu acho que a gente se fode que é
para continuarmos a sonhar!!!
INFERNO...PARAISO..o que é um e o que é outro....
abraço.
Heidegger 2x1 Sartre, aos 15 minutos do segundo tempo.
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