quinta-feira, 11 de dezembro de 2008

As Luzes da Cidade



O sol está se pondo quando eu chego ao parque. Horário de verão. Devem ser umas sete e pouco da tarde, o momento do dia em que as nuvens parecem se dissolver e o céu ganha uma coloração nostálgica, deprimente, meio alaranjada como a chama de uma vela prestes a se apagar. Meio avermelhado como se prenunciasse atos violentos e sórdidos. Pela janela do carro eu quase posso ver o pecado começando a tomar conta da cidade. As primeiras estrelas despontam, opacas, como cacos de um sol despedaçado, esforçando-se para brilhar. Minha avó costumava dizer que as estrelas eram os olhos de deus vigiando nosso sono.

Mas essa noite será nublada.

Eu fico dentro do carro, estacionado entre as árvores, observando o gramado à frente e vigiando as pessoas que vêm e vão, correndo, gritando, conversando e sorrindo. Admiráveis pessoas desprezíveis com seus animais de estimação, com suas roupas coladas ao corpo e suas toalhas de piquenique. Com seus sorrisos plásticos e toda a saúde do mundo. Mas nenhuma delas está marcada, por isso apenas espero.

Mantenho os vidros enegrecidos do carro fechados e o aparelho de som desligado. Hoje não é um dia de música. Já não é mais dia. O sol foge finalmente para trás do bosque, escondendo-se do mundo. O lago se torna negro demais para refletir qualquer coisa além da própria escuridão. A noite chega, e eu não acendo os faróis. Os postes se acendem a cada quinze metros, como vagalumes estáticos de três metros de altura. Algumas pessoas vão embora, outras ainda ficam, e enquanto isso luzes se acendem dentro das mansões ao redor do parque. Mansões construídas em cima de segredos podres e milionários, escondidas atrás de muros farpados e impenetráveis.

Eu desço do carro e respiro o ar fresco do crepúsculo. No porta-malas pego a Bailarina, guardo-a comigo e inicio minha caminhada. As luvas de couro me protegem do frio, mas ainda assim preciso apertar o sobretudo contra o peito para que o vento não pareça tão cortante. Como um bom cidadão, eu ando sempre sob a luz dos postes, seguindo pela pista de corrida que contorna todo o parque. Meus lábios estão secos e rachados, passo minha língua sobre eles e a pele áspera chega a me machucar. Caminho por cerca de cinco minutos até encontrar alguém. Uma mulher. Velha. Ela anda a passos largos, vindo em minha direção, apressada. Eu a observo atentamente, mas não há marca alguma nela. Continuo caminhando, e quando a velha passa por mim levanta no ar um cheiro horrível de perfume barato e cigarros, o tipo de cheiro que gruda no cabelo e nas roupas. Ela vai embora e eu mantenho o ritmo do meu andar, movendo os olhos em todas as direções, observando cada vulto, absorvendo todos os sons. Alguém dá a partida em um motor V8 longe daqui. Os mosquitos sibilam em torno das lâmpadas, silhuetas se movem do outro lado do lago.

Risadas.

Eu ouço risadas.

Alguns metros adiante abandono a pista e sigo pelo gramado, onde a penumbra me envolve como um uniforme de guerra. Eu caminho sem pressa, sentindo a pulsação regular do meu coração e o frio que sobe por dentro das mangas do casaco. Mesmo assim, eu não tremo. Minhas pernas e braços estão firmes. Eu estou no controle.

Seguindo as risadas, caminho para dentro do bosque, onde as árvores começam a enroscar seus galhos umas nas outras, fechando a vegetação. O borbulhar da água de um riacho próximo lentamente ganha volume. Eu continuo seguindo as risadas, enquanto a escuridão se torna cada vez mais densa. Antes mesmo que eu os encontre, sei que são um casal. O homem fala pouco, tem uma voz grave e macia. Ela não. Sua risada é rascante, nervosa, típica de uma garota jovem e impulsiva. Descontrolada.

Eu os encontro sentados próximos ao riacho; um ao lado do outro, de costas para mim. Sua conversa e o riso histérico da garota abafam o som dos meus passos sobre as folhas e os galhos quebradiços. Mantenho-me escondido entre as árvores a uma distância de nove ou dez passos. Observo os dois sem demora, prestando atenção a todos os detalhes. E então, eu vejo...

A marca.

É como se tivessem tinta fosforescente espalhada por sua pele, ou grandes alvos circulares pairando acima de suas cabeças. Suas almas, seus corpos, seus gestos os identificam do mesmo modo que um sinalizador disparado em um quarto escuro.

Eles brilham na noite, e eu sei o que deve ser feito.

Meus dedos enluvados envolvem a Bailarina dentro do bolso. Eu a trago para fora, roçando o metal contra o tecido. Eles riem. Eles estão marcados. A Bailarina se ergue na escuridão da noite, linda e precisa, uma extensão do meu braço. Mentalmente, digo a ela o que fazer. Prendo a respiração. Deixo que ela escolha quem será o primeiro.

A garota.

Nós somos um só quando eu puxo o gatilho e o trovão do disparo se espalha pela mata. A cabeça da garota explode em um festival vermelho. Por um momento há silêncio, e o jovem precipita seu olhar para dentro da floresta. Para mim. Eu estou olhando dentro dos seus olhos quando atiro pela segunda vez, e minha preciosa Bailarina não me decepciona. Um tiro perfeito, no topo do crânio, uma obra de arte impecável.

A cada vez que puxo o gatilho dou vida a um clarão infinitamente belo e fugaz.

Meu coração não dispara, e minhas mãos não tremem. A Bailarina cospe pelo cano quente sua fumaça voluptuosa, que dança com o vento até se dissipar.

Minha Bailarina. Minha artista.

Depois de guardá-la eu recolho as cápsulas caídas no chão, tiro uma foto de cada um dos corpos e uma terceira enquadrando ambos. E vou embora.

Faço o caminho de volta na mesma velocidade. Um cachorro me segue por metade do trajeto, abanando o rabo atrás de mim. Mesmo depois que alcanço o carro, devolvo a Bailarina ao porta-malas e dou a partida, mesmo quando acelero pela rua para fora do parque, ainda posso vê-lo pelo retrovisor, sacudindo sua cauda para ninguém.

No primeiro semáforo fechado abro o caderno em cima do meu colo, e iluminado pela luz escarlate do sinaleiro rabisco sobre a folha: “27”.

Está ficando cada vez mais fácil. Mais brilhante. Mais irresistível.

E, como eu disse que aconteceria, essa foi uma noite nublada. Mas sempre é.


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