domingo, 21 de dezembro de 2008

Y, O Macaco

Eles me chamam Y.

No início, eu fui um macaco. Minhas primeiras lembranças remetem a uma infância passada dentro do zoológico do Passeio Público de Curitiba. Jamais conheci meu verdadeiro pai. Fui criado por minha mãe junto a outros cinco macacos, a maioria vinda de distantes e variadas localidades. Uma dessas criaturas símias era minha irmã mais nova, único laço sanguíneo que tive por toda a vida além de minha mãe. Minha irmã, eles a chamavam Mimi. Nossa casa era uma grande gaiola de ferro, que foi tornando-se cada dia menor à medida que se dava meu desenvolvimento físico e emocional, de modo que lentamente me dominava a angustiosa esperança de escapar dali e alcançar novos limites, renovando assim minha simplória perspectiva de vida. Sonhava, em minha juventude, não ser detido por tão vis grades que me impediam se conquistar o mundo do lado de fora, pisar sobre o chão de areia e escalar os muros construídos para nos separar do universo dos homens. E por entre tais grades vi passar, dia após dia, crianças lambuzadas de sorvete e pais afetuosos que as levavam pela mão a um passeio inesquecível pelas entranhas de nosso lar.


Nosso lar, o Passeio Público, residência de dezenas de animais virtuosos e encantadores.


Desde cedo foi-nos ensinado, a mim e a minha irmã, pelos macacos mais velhos e, sobretudo por nossa mãe, as arrebatadoras coreografias que deveríamos realizar em dedicação aos seres humanos, que vinham nos visitar e nos assistir em troca de uma tarde de pequenos espetáculos animais. Vinham durante toda a semana, exceto na segunda-feira, quando o Passeio permanecia fechado à visitação, e em imódico volume aos sábados e domingos.


Aprendíamos tudo o que cabia aprender a um macaco; escalávamos A Grande Árvore, o único organismo arbóreo presente em nossa jaula. Sorríamos e pulávamos de um galho a outro, mostrando nossa força e destreza, emitindo grunhidos amigáveis às pessoas que por ali passavam e jamais, sob nenhuma hipótese, aceitando os alimentos que nos ofereciam, seus nacos de massa engordurada e demais petiscos que insistiam sempre em atirar para nós.


Foi desta forma que perdi minha irmã, quando estava ainda no início de minha adolescência. Tão ingênua, a pobre Mimi, apanhou entre seus dedos miúdos um pedaço de comida oferecido por um jovem perverso, enquanto o destino apoderava-se de nossa distração para findar a precoce vida de minha irmã. O assassino que a envenenou havia já àquela época sido a fonte de outros três homicídios em distintas regiões do Passeio Público: um pelicano, um canário e um cachorro, sendo este último, fiquei sabendo por meio de comentários dispersos, somente uma desavisada cadela que por ali transitava em um dia de muito calor. Este homem cruel foi apanhado em uma quinta-feira nublada, de pouco movimento, por guardas locais que o acusaram de atentado contra a natureza. Desde então, nós macacos redobramos nossa atenção quanto às entidades que por ali perambulavam nas solitárias tardes de Curitiba, aprendendo não mais truques que agradassem aos humanos, mas sim técnicas diariamente aperfeiçoadas que nos mantivessem fora do alcance de seu diabólico sadismo.


Após o sofrível e amargo período decorrente à morte de Mimi, nossa jaula nunca mais voltou a ser a mesma. Os macacos mais velhos passavam grande parte do dia se dedicando exclusivamente ao sono tranqüilo sobre a madeira de seus galhos, recusando-se a realizar qualquer peripécia que atraísse a atenção do público. Minha mãe, pobre maldita, por diversas vezes recusou-se a se alimentar das refeições que nos eram servidas ao longo do dia pelos próprios funcionários do Passeio Público, e jamais descobri se por trás desta atitude se ocultava uma ponta de receio ou uma centelha eternamente acesa de raiva. Mas não há dúvida de que os atos de todos os macacos ali presentes passaram a expressar uma inconfundível mágoa, mista de ódio silencioso, pela morte de minha irmã.


Quanto a mim, rapidamente transformei-me do símio belo e afetuoso que era em um macaco angustiado, rancoroso e desprovido de esperanças. Caí em desgraça e observei por nove longos anos, astuta e silenciosamente, o estranho mundo dos homens. Enquanto meus similares sentavam-se sobre as folhas secas e observavam as estações passarem em frente aos seus olhos cansados, sem consciência do fatídico dia que haveria de chegar para marcar o término de sua existência, eu me calei e estudei. Analisei sem pressa o ir e vir das horas e as peculiares figuras humanas que me eram apresentadas ao raiar de cada nova manhã. Despertava ao abrir dos portões, e apenas voltava-me a deitar quando o último visitante já havia se retirado. Através daquelas infames grades que me privavam do contato com a realidade externa ouvi e aprendi tanto quanto pude do dialeto humano. Quando os velhos escritores se sentavam em um banco próximo à jaula, com um livro de poesia em uma mão e uma garrafa de conhaque na outra, eu estava lá para forçar minha vista e capturar o número máximo de palavras e letras que me era permitido. Ouvia as conversas familiares e as confissões segredadas pelos enamorados que ali surgiam para marcar nos troncos com o canivete seu amor eterno. A maioria deles nunca mais aparecia. As crianças foram crescendo, e o encanto por nós, animais, morria dentro delas a cada ano que se completava. Seus pais ficaram velhos demais para as arrastarem a um passeio dominical pelo centro da cidade, e os infortunados escritores morreram de cirrose ou câncer pulmonar.


O mundo crescia lá fora, a cidade se desenvolvia e novas atrações eram criadas, enquanto nós apodrecíamos em degradante isolamento. As três refeições diárias foram substituídas por duas; uma matinal e outra noturna. Mas chegou a época em que até mesmo os funcionários estavam cansados demais para continuar sua triste rotina profissional, de modo que pediram demissão ou simplesmente a aposentadoria. Menos trabalhadores, um público menor e, enfim, uma refeição ao dia, inicialmente durante a tarde, mas logo insubordinada a qualquer horário e aplicada tal qual a vontade de seus responsáveis, de modo que chegávamos não raramente a ser alimentados uma vez a cada dois dias.


Mas o tempo soube recompensar, ainda que exigindo uma infinita paciência, as mazelas infligidas a mim e aos meus. Percebo agora, infelizmente, que esta é uma versão hipócrita dos fatos, tendo em vista que apenas eu pude ser capaz de absorver algum benefício através do sofrimento ao qual fomos submetidos, enquanto via meus pobres companheiros de cela definharem progressivamente diante de mim.


Periodicamente abastecia-me do lixo que era atirado ao chão moribundo do Passeio, caçando com meus braços esticados para fora das grades aquilo que me parecia ser de alguma utilidade. Pequenos objetos caídos acidentalmente de bolsos humanos, panfletos comerciais ou até mesmo páginas rasgadas de antigos livros que eram abandonadas por ali e trazidas até mim pelo vento. Aprendi a usar de artifícios primitivos para conquistar o que desejava, fazendo uso de galhos ou pequenos pedaços de arame para apanhar o que quer que estivesse próximo a minha jaula e trazê-los junto a mim, aprendendo de forma penosa mas frutífera o linguajar dos homens, sua simbologia e até mesmo seus desejos. Constantemente, tendo em minha posse limitados resíduos urbanos como garrafas ou carteiras de cigarros, arrancava-lhe seus rótulos e os guardava secretamente sepultados sob um buraco que arduamente escavei com as próprias unhas sob as raízes mortas d’A Grande Árvore. Ao longo das semanas, meses e anos fui reunindo ali páginas rabiscadas, imagens de logo marcas e até mesmo os mais fúteis utensílios humanos como chaveiros ou adornos simplórios da moda humana. Em diversas ocasiões, quando todos se recolhiam e os portões eram fechados, vi-me deslumbrado sob a luz do luar a correr os olhos sobre o lixo do mundo, que para mim parecia tão raro e tão complexo. Notas fiscais, moedas e listas de compras. Números, embalagens e imagens de lugares distantes. Conquistei até mesmo um calçado já desgastado, aproveitando-me de seu cadarço e o atirando novamente para o lado de fora. Contemplei tudo aquilo como se fosse uma promessa de liberdade, ecoando alto em minha mente ainda pouco desenvolvida.


E assim fui infiltrando-me na sociedade dos homens, primeiramente aprendendo o significado de seus gestos e comportamento, e depois descobrindo sua odiosa psicologia, sua amável cultura e a exuberante ironia que dava brilho às suas atitudes. Aprendi também a malícia de seu comportamento, observando idosos maltrapilhos masturbando-se, dissimulados, enquanto observavam jovens amantes apaixonados em um banco próximo ao lago. Descobri seus vícios atentando para os sombrios seres que realizavam, naquele antro de decadência, seus ilícitos negócios em um aperto de mão. Deparei-me com a invasão noturna ao Passeio Público levada a cabo por um garoto e sua parceira, seguida de seu acasalamento na ponte suspensa sobre o lago esverdeado e fétido próximo a minha jaula.


Eu vi como era tentador e sórdido o mundo dos homens.


E, como haveria de ser, descobri também a solidão. O vazio e a inquietação da alma, a falta de sentido que permeia a existência, seja ela símia ou humana. Eu compreendia a linguagem dos homens, e os ouvia falar sobre deus. Fé. Prazer. Palavras que para mim acarretaram em infindáveis tormentos, noites em claro. Era excruciante a sensação de ver-me tão próximo ao mundo, e ainda assim tão distante. Os velhos macacos aos poucos tornaram-se não mais que extensões da própria árvore em que passavam os dias dependurados, figurando no melancólico cenário do Passeio Público como ornamentos estáticos de uma paisagem sem vida, silhuetas deformadas dos macacos afáveis que outrora haviam sido. Um a um foram sendo vitimados por doenças que os conduziram à morte ou a um estado vegetativo irreversível. Minha mãe foi tomada de uma incontrolável depressão, e nos quinze dias que antecederam seu falecimento nada fez além de prostrar-se diante das grades enferrujadas em profundo silêncio, observando a cidade que se estendia além de seu alcance, um lugar em que jamais poderia estar e entre cujos habitantes nunca estabeleceria uma convivência além daquela a que se destinara durante os últimos anos, sendo então somente reles objeto decorativo da animalesca civilização urbanizada. Passou dias recusando-se a comer, minha entristecida mãe, até abater-se por completo. Seu corpo foi levado por um par de homens brutos e nunca mais a vi.


Dois dias atrás deparei-me com uma caneta esferográfica abandonada ao lado de minha jaula. Apanhei-a com aprimorada discrição e, horas depois, durante a madrugada que se abateu sobre nós, Os Animais Aprisionados e Esquecidos do Passeio Público, pus-me a redigir, com toda a velocidade permitida pela ausência de meu polegar opositor, o primeiro e último escrito de meu próprio cunho durante toda esta miserável, porém curiosa, existência.


No momento presente, próximo ao raiar do sol, findo aqui minha breve biografia, que bem será meu epitáfio, e dirijo-me ao topo d’A Grande Árvore onde já me espera o desbotado cadarço que mantive por tanto tempo guardado, agora caprichosamente amarrado ao galho mais alto, pendendo em um laço perfeito em direção ao solo. E é nessa forca bestial que logo mais encontrarão meu corpo suspenso, frio e morto, balançando ao ritmo do vento da primavera e finalmente livre das angústias mundanas, das grades, das mesmas refeições de todos os dias, do sofrimento e, acima de tudo, liberto para decidir sobre o curso de meu próprio destino...




8 comentários:

ex-amnésico disse...

Aqui começa (termina?) a libertação.

Alpha et Omega

Laura Cohen disse...

a decadência segundo y.
Voces nao eram doentes? Estao se curando ou se drogando?

Grazi disse...

É! Eu notei!
E nem para me avisar sobre a troca de endereço de novo!

Bobos! x(

Grazi disse...

Ahh, sobre o texto do Y.
Não sei o que dizer... :P
Gostei, serve?
Ele me dá medo...

ex-amnésico disse...

Ele também?

Servimos para alguma coisa então!

Happy Birthday to you!

;)

Grazi disse...

Wie bitte?

R. S. Diniz disse...

(Acho que o happy birthday foi ironia)

Agora só faltam Welker, Ronan e Carlitos escreverm alguma fábula do tipo. Então compilaremos e lançaremos um livro: As Fábulas Doentes!
Tá, depois eu arrumo um nome melhor.

Já temos "Os Animais Aprisionados e Esquecidos do Passeio Público" e "O Tratado do Siamês Castrado".

Sugestões para animais: raposas, coelhos, cavalos, dragões...



Ao trabalho!

Welker disse...

Aceito o desafio, apesar de não conseguir fazer nada tão complexo... vou apelar para o humor talvez... pensando melhor, não, eu não aceito o desafio.