A luz entra pela janela e bate na minha cara anunciando o raiar de mais um dia de merda. Tento voltar a dormir, não consigo, desisto, rastejo finalmente para fora das cobertas como um animal meio aleijado, um tanto pulguento, estralando o maxilar e vestindo a mesma roupa do dia anterior, e do dia antes deste. A cada manhã a casa parece menor e a cor das paredes sugere que despertei em um inferno azul-claro. Pelo resto do dia meu tempo será dividido entre cigarros, o violão e o computador, na frente do qual consigo passar horas sem fazer absolutamente nada, esperando o tempo passar.
O relógio bate, e o mundo espera que eu faça alguma coisa.
E eu faço. Arquiteto magníficas punhetas, realizo jornadas épicas do quarto para a sala, fotografo mentalmente o olhar depressivo que me encara no espelho, releio todos os livros que já li e embarco em viagens fantásticas de sono profundo patrocinadas pelo Barão Dramin.
Os ponteiros correm, perseguindo a si mesmos interminavelmente.
A paisagem lá fora muda pouco. Aqui dentro não muda nada. Passo o dia inteiro esperando um desastre, uma epifania, um telefonema. Nenhum deles chega. Eu espero deus bater na minha porta e dizer qualquer coisa, espero a iluminação, eu espero que meus dentes e cabelos caiam e espero cair na cova. Eu passo meus dias aguardando, seja o que for. Pelo tempo que estou esperando deve valer a pena.
Os céus escurecem anunciando a chegada da imponente madrugada, mãe dos bêbados, saqueadores e pervertidos. Dos molestadores e dos molestados. Minha mãe, que me alimenta em seu seio murcho e velho, o mesmo seio que talvez tenham abocanhado Leminski e Trevisan. E enquanto todos têm seus nomes inscritos com letras douradas nas capas de revistas, nos mausoléus de mármore e na porra da Grande História do Mundo, eu continuo sendo somente Eu, obrigado a carregar o próprio peso e a pensar sempre os mesmos pensamentos, incapaz de não ser eu, de ser outro, destinado à desprezível resignação que finca seus dentes na jugular dos fracos, dos inúteis e imprestáveis, daqueles esquecidos pelo mundo, e dia após noite, noite após dia, sorve de mim a inspiração, a alegria, meu sangue e meu tempo, sugando-me com tamanha devoção que sou levado a redigir o pior dos contos, o pior dos poemas, e narrar para as baratas em meu ombro a triste rotina de Eu, uma história curta demais para se tornar um romance e muito longa para ser vivida.
Ao cair da noite os pássaros fogem e as corujas despertam, e enfileiradas ao longo do galho observam-me distantes, trocando risadas entrecortadas e com seus gordos olhos amarelos vislumbrando meu rosto atrás da vidraça do mesmo modo que se observa um animal engaiolado, alimentado mas faminto.
As horas passam, ocupadas em construir o tempo, e o tempo tão ocupado em me destruir vai passando sem que eu construa nada, Eu, desperto madrugada adentro, adormecido por dentro, atravessando sozinho o deserto da noite e me afogando no oceano do isolamento.
Eu.
Eu...
eu...
terça-feira, 2 de dezembro de 2008
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4 comentários:
Agora eu fico pensando: o que será que te leva a postar um texto? Porque há textos que vc gosta e que não gosta?
Eu achei esse texto excelente, especialmente porque ele segue o estilo de narrativa típico dos seus textos (que eu eu, como disse antes, não aprecio muito) mas ao mesmo tempo prende a atenção e faz a gente viajar junto com suas idéias.
E dá pra sentir o cheiro da erva exalando do texto também!
Acho que eu preciso revelar algo a todos. Provavelmente vocês já devem saber, mas enfim, vou dizer mesmo assim.
Eu tenho medo do Yohan.
Trocando 'violão' por 'gaita de boca' e 'Barão Dramin' por 'Arquiduque Álcool', vocês têm uma descrição perfeita do meu cotidiano aqui. Apesar de eu não ter visto corujas, ultimamente (e masturbação, só mental).
Simplesmente genial.
Aceitando a sugestão, passei por aqui. Mas como nada muda, sem assunto a comentar.
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