sexta-feira, 12 de setembro de 2008

Curitiba

Nesta cidade o céu à noite é sempre vermelho ou cinza. Nunca preto ou estrelado. Sempre coberto por nuvens desbotadas e densas, que fazem essa merda de mundo parecer uma merda ainda maior.
Curitiba, a terra dos pinhões.
Pelo menos sobraram alguns pinheiros sobre o asfalto para simbolizar o que quer que seja que sobrou dessa cidade nos últimos três séculos.
Depois de saltar do ônibus no ponto mais perto de casa, eu ando algumas três quadras sob esse céu nublado e meio rubro. Eu posso jurar que, se chovesse agora, as gotas de chuva não seriam água, mas sangue. Todo o sangue derramado que evapora aqui, entre os becos, sob os viadutos, e sobe quente, fervendo, direto até o céu, para depois cair novamente sobre nós pecadores, sujos, mortais.
Descansando no bolso da jaqueta surrada pelos anos, um livro de qualquer poeta doente e maldito e, este sim, imortal, mas já livre do castigo da chuva vermelha que se precipita, resumido a palavras impressas e páginas de bolso. Uma vida toda de contos e poesia, de arte e pobreza, resumida a uma biografia de sessenta páginas sepultada no bolso de qualquer um. Quem sabe, eu penso, quem me dera, eu pudesse ter o mesmo fim, preso às gerações vindouras por um livro de capa dura e código de barras.
Quando estou na metade do caminho, quase passando em frente ao Mercado Municipal, de cabeça baixa e compenetrado em uma extrema alienação poética, surgem ali dois indivíduos, maltrapilhos e de cara fechada, dura. Um mais baixo e novo, o outro um quanto mais corpulento e açoitado pelo tempo, exatamente como minha jaqueta e o escritor enclausurado ali dentro, no ninho quente de tecido e costuras. Como se surgissem saídos de um esgoto ao lado da calçada, aparecem logo à minha frente e chegam junto a mim, caminhando na minha direção até pararem, bloqueando o caminho. Um fica mais atrás, outro na frente, de modo que não há como correr ou se esquivar.
Perguntam se eu quero morrer hoje, se eu quero, você quer?, passa o celular, a carteira, anda, porra, vai passando tudo, tá querendo morrer? Merda de noite, merda de ladrõezinhos estúpidos roubando o pouco que eu tenho, estragando minha noite um pouco mais. Eu não lhes dou nada, mas ainda assim tiram-me tudo. Apalpando e buscando, tirando, caçando, esvaziando meus bolsos sem que eu possa fazer muita coisa além de dar alguns empurrões e tentar me desvencilhar de suas mãos encardidas e maltratadas. Pegam uma coisa aqui, outra lá, segurando meus braços e apanhando a carteira, o celular — essa merda que afinal não serve pra muita coisa —, até mesmo as chaves de casa que atiram no meio-fio, mandam que tire a jaqueta, socam um pouco minhas costelas. A jaqueta não, porra, é velha, está fodida, eu quero ficar com o livro e terminar de ler pelo menos o conto que estaquei na metade, saber se ele traça ou não a velha viúva. Quer morrer, caralho?, tá afim de morrer seu merda?, passa logo, porra.
Então algumas pessoas vêm subindo a rua, e os dois e eu percebemos isso, e o céu continua fechado, vermelho, meio que sem decidir se chora ou não, e nós ali no meio da calçada se debatendo toscamente. Então eles fazem alguma coisa e saem correndo, rua acima, se enfiando em algum buraco, e eu ali, caindo sem jeito no chão, sobre as pedras cinzas do calçamento. Porra, o que eu queria mesmo saber é de onde veio aquele canivete, lâmina de dezesseis ou vinte centímetros, enfiada duas vezes na minha barriga, bem no estômago, abaixo das costelas batidas. Merda de guris, me levam tudo e ainda surgem com aquela faca, tirada de não sei onde, e enfiam duas vezes — DUAS, desgraçados — bem ali, perto do meu umbigo, meio que abrindo passagem pras minhas tripas fugirem em liberdade. Caído no chão, sangrando um sangue preto e fedorento, nauseante, pessoas subindo pela rua e surgindo de repente nas esquinas, mas ao menos fiquei com a jaqueta, vitorioso, o escritor imortal ali no bolso e eu aqui, morrendo sem futuro nenhum. Antes tivessem ao menos me esticado a faca e deixado que eu decidisse meu próprio destino, como tantos outros puderam fazer, e tirado minha própria vida com dignidade, tido a honra de cometer um legítimo suicídio, belo e puro e simples, ao invés de ser esfaqueado por uma dupla escrota que não saberia diferenciar um Rembrandt de um Escher, me deixando ali para vislumbrar a própria morte.
Tento encontrar afoitamente o celular no bolso da calça, ligar para alguém, talvez ainda haja tempo para pedir socorro e ir a um hospital, ser costurado e remendado e esperar até que os médicos e enfermeiras saiam do quarto e, então, em um leito branco e limpo, abrir os pontos ou tomar uma overdose e agarrar a escolha a qual não me permitiram tomar para mim, e me mandar daqui como um verdadeiro herói que com desprezo se desvencilha do mundo sórdido a que foi condenado. E, enfim, eu penso — talvez um celular não seja tão inútil assim, e toda aquela merda sobre perceber o valor das coisas apenas quando as perde seja verdadeira, e talvez, não, provavelmente, eu teria jorrado sangue suficiente para pintar uma casa de três quartos antes de receber ajuda.
Mas a vida é assim mesmo, feita de altos e baixos — como dizem por aí os velhos e capados sem alma nenhuma —; altos para aqueles que pisam sobre as cabeças dos que estão lá embaixo, chafurdando em um poça gorgolejante de concreto.
A coisa mais estranha acontece: uma música do Queen, Bohemian Rhapsody, começa a tocar no fundo da minha cabeça, aumentando o volume progressivamente, embaçando meus olhos enquanto meu estômago se revira dentro ou fora de mim. Rapsódia Boêmia, que bosta, não seria esse o título e melodia que eu escolheria pros meus últimos segundos.
Eu caio de costas, as luzes do poste se apagam ao longo da rua, as pessoas correm e assistem o fiapo de vida do seu desventurado narrador se esvaindo pela sarjeta e entrando pelas brechas do esgoto, o molho de chaves ali ao lado ficando meio marrom, avermelhado, a chave para a morte. No bolso o poeta imortal ainda espera por uma leitura que nunca vou concluir, e a música tilintando dentro do crânio vai emudecendo os gritos pela avenida, apagando as sensações e me deixando ali, com uma história inacabada, dois furos na barriga, uma vida de talentosa mediocridade e aspirações utópicas, e o intestino cheio de merda como qualquer outro.
Ao menos não terei que olhar para cima novamente e observar esse céu lamentoso e vermelho, e esperar que chova sangue pelas ruas, pois agora eu sou a chuva nas alamedas e a lama dos esgotos.

Nenhum comentário: