sábado, 22 de março de 2008

Easter Egg

Um coelho entra em um açougue e pergunta:
— "Tem cenouras?"
— "Claro que não, isso aqui é um açougue!" — responde o açougueiro. O coelho vai embora.

No dia seguinte, o coelho volta ao açougue:
— "Tem cenouras?"
— "Já lhe disse que não, aqui se vende carne!" — exaspera-se o açougueiro. O coelho se vai.

O dia seguinte. O coelho. O açougue. A pergunta:
— "Tem cenouras?"
— "Não! Não tem cenouras! E se você perguntar isso de novo eu o enforco, está ouvindo?"
O coelho sai.

Três dias depois, o coelho entra no açougue e pergunta:
— "Tem corda?"
— "Corda?! Não, não tem." — responde o intrigado açougueiro. Ao que o coelho pergunta:
— "Então... tem cenouras?"

sexta-feira, 21 de março de 2008

O Evangelho Segundo Y

Ergueu o primeiro prego um pouco acima do pulso esquerdo, elevou o martelo e desceu-o sobre a carne macia.

Perfuração.

Tirou do cinto o segundo longo prego forjado divinamente, pousou-o no pulso direito e bateu, pregando o braço à madeira.

Sacrifício.

O homem deitado se debateu como um porco enquanto ele pregava o terceiro prego nos pés, cruzando-os um sobre o outro e atravessando os músculos com o glorioso pedaço de ferro.

Ilusão.

Cinco soldados elevaram a colossal cruz até que todos pudessem ver o homem nu crucificado que se debatia e praguejava contra seu deus.

Foda-se, ele disse. Foi o que ele disse. Foda-se o Pai, foda-se a salvação, foda-se o mundo e toda a maldita humanidade. deus é um veado, ele disse. Um filho da puta. Ele cuspiu sangue no ar e quando sorriu as frestas entre seus dentes estavam vermelhas.

Subiu a ponta da lança e atravessou no abdômen de Cristo, para que ele calasse sua maldita boca. O homem sacrificado gorgolejou e se afogou com o próprio sangue, e riu com orgulho do seu feito. Estava tudo perfeitamente bem agora. Havia conquistado seu lugar na história.

Nos encontraremos no inferno, ele disse. Foi o que ele disse, enquanto fios escarlates gotejavam de seu queixo e um pouco de sêmen espirrava no solo abaixo.







Amém.

sábado, 15 de março de 2008

Carta ao Papai

Papai

Gostaria de dividir com você algumas das minhas opiniões e sentimentos que, apesar de não serem assim tão recentes, me incomodam de modo profundo e constante. Não sei como começar a dizer, então vamos pular a introdução e ir direto ao que eu realmente quero lhe dizer. Você é um merda. Você é patético, repugnante e eu odeio você por me fazer ser assim. Eu me odeio, porque eu sou como você. Eu vivo falando que não quero ser como todo mundo, que a humanidade é uma merda, e me dizem para então ser alguma coisa. Para fazer acontecer. Não, não dá. Eu não tenho capacidade. Você matou a mim, papai. Com sua educação limitada, livros didáticos e injeções intramusculares, você acabou comigo e me entregou ao mesmo futuro que o seu. Isso tudo foi inveja, papai? Porque você não podia ser melhor que eu, eu tenho que ser pior que você? Eu sou patético, tenho uma rotina lamentável, não tenho capacidade de fazer grandes coisas. Não sei escrever um best-seller. Não posso compor uma canção de sucesso. Não vou bem na escola, não faço sucesso com as garotas nem sou bom nos esportes. Às vezes consigo ler um livro, e sou bom em ouvir músicas. Eu sei ouvir. Gosto muito de ver filmes. Eu sou isso. Sou a vocação castrada de alguém, a vida alterada de outra pessoa como eu. Eu sou você, papai. E eu nasci para ficar atrás da cortina, sentada em frente ao palco, apoiado sobre os joelhos, batendo palmas e pedindo autógrafos. Eu não posso ser um astro, papai. Não fui feito para brilhar, mas sim para ser iluminado pelas verdadeiras estrelas. Eu nunca serei um astro do rock ou um escritor de sucesso, e não quero que você me engane, papai. Não vou deixar que ninguém faça isso. Você me pôs no mundo e pode dar ordens à vontade, e eu vou calar a boca. Mas antes você tem que me escutar. Tem que saber que nós temos plena consciência da merda de vida que levamos, e a culpa é de vocês. Vocês nos dopam e gritam conosco, e isso simplesmente fode com a gente. O que eu quero dizer, papai, é que eu desisti. Você venceu. Todos vocês. Eu não tenho ambições, nem vontades. Não tenho potencial. Mas eu vou ser perfeito, papai. Vou bater os aplausos perfeitos, vou gritar no tom certo e escolher um bom terno para a minha entrevista de emprego amanhã. Eu não te amo, papai. Nunca amei nem vou amar, mas desejo a você felicidades e muitos anos de vida. É assim que tem que ser. Eu sou o espectador atrás do espectador atrás do espectador, um coadjuvante da minha vida, o nêmesis da minha história. Eu odeio você e no que você me transformou, papai. Lembre-se disso. Você se matou e agora matou seu filho. Nunca se esqueça que os verdadeiros heróis estão mortos, e você condenou seu filho a mais uma geração de sofrimento, hipocrisia e resignação.

Com todo o rancor do mundo,

Seu Filho.

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terça-feira, 4 de março de 2008

Hino

Sinto-me vazio como um peixe limpo

E o mundo continua rodando em seu vórtice implacável

Os prédios se erguem na cena como túmulos guardando corpos inertes

O céu deixa de ser vermelho para tornar-se cinza por uma noite

O galopar contundente dos que já se foram e retornam


Alguém toma a atenção para si e rege ordens, desenha letras, assusta pessoas

Em um lugar sujo e abafado uma garota chora a cada vinte e quatro horas

Seu amigo invisível pede que ela se deite, não chore, feche os olhos

Em outro lugar algo se quebra e explode em pedaços desfeitos

O que era perfeito pode tornar-se irreparável


Sinto-me perdido como um cadáver flutuante

Aos poucos a verdade se torna distante e sua mão faz movimentos involuntários

Um menino se encanta com o brinquedo na vitrine em um canto da cidade

Um motorista condenado atropela o garoto distraído

As celas batem contra o couro anunciando a chegada do fim


Dentro de um quarto combalido uma mãe morre em lençóis sujos

Seu bebê se afoga dentro da banheira em gritos leves e úmidos

Ratos rastejam sob roupas, entre peles, esfregando-se, cobrindo, infectando

Vidas são arrebatadas e corrompidas

A manhã eleva-se no céu, substituindo o cinza por vermelho


Sinto-me apagado como uma folha queimada

Corpos sujos se arrastam por cima das camas

Memórias desgastadas são disseminadas e reencontradas

Pessoas enfileiradas são como lápides de si próprias

A festa fúnebre perde-se no eco das palavras


Aquela garota colhe estrelas com as mãos enquanto desaparecem entre as nuvens

As avenidas são corredores onde seres mudos fazem uma travessia

O amor é uma faca que deve ser segurada pela lâmina

Todos os renegados vêm para recolher seus pertences

Tudo o que já foi está voltando agora

Portulan

Siga-me pela estrada do transe e atravesse comigo o véu de Parroket em busca da biblioteca de Akasha; caminhe ao meu lado pelo reino de Hypnos e cruzemos juntos o Portão de Chifre, demandando os sonhos que não são sonhos.

Você não precisa de mim para chegar até lá: como todos os seres vivos, você é signatário do Antigo Pacto e tem livre acesso a essas regiões; de fato, você as visita todas as noites. Mas os campos além de Véu são instáveis e enganosos, enquanto que a entrada às terras de Morpheus se dá, mormente, pelo Portão de Marfim das fantasmagorias sem sentido ou importância dos sonos comuns. É então vantajoso ter um guia experimentado nas viagens pelo Não-Real; sonhadores, místicos e poetas são visitantes frequentes dessas terras, e seguindo seus rastros você pode ou não alcançá-las, dependendo de sua índole e marca de nascimento. Eu, que na infância fui um iniciado anagnóstico, ainda posso lhe ensinar os descaminhos, pois não há um meio único de se alcançar o objetivo, nessas regiões. Posso lhe dizer como simpatizar com a biblioteca e lhe indicar o Portão certo a atravessar; mais importante ainda: posso provar-lhe que o Tigre que ronda por ali (como ronda o Universo todo) não lhe pode fazer mal algum. Seu nome é Medo e, por mais que ruja e morda, só pode ferir a quem lhe dá esse poder. Confie no guia.

O que não significa que não haja perigos na viagem. Quem atravessa os campos de Além-Mundo sob o manto do inconsciente passa invisível a seus habitantes. Já quem os cruza desperto percebe muito mais, mas também é percebido: alguns destes habitantes são inofensivos ou, pelo menos, indiferentes; outros não, podem ligar-se ao viajante e atormentá-lo pelo resto de seus dias; é preciso, pois, cautela e discernimento para evitá-los. Quanto aos guardas das passagens, esses não se pode evitar: aqui o conhecimento é crucial, conhecimento e poder, para obrigá-los a abrir caminho ou matá-los, se necessário. Esse não é, decerto, empreendimento para curiosos.

Há perigos, pois. Por que arrostá-los?

O que o mundo das pessoas chama de Real é apenas parte da Existência total; há uma diversidade de domínios no Universo, aos quais raramente nossa espécie tem acesso; supõe-se mesmo que haja áreas que jamais conheceram a presença humana (e para além do mundo, para além dos todos os mundos, inícios e finais, está o Chaos primevo, a Fonte de todos os Tempos, Espaços, Forças e Entidades). E há espíritos errantes, cuja natureza é buscar o que está além deles, para bem ou para mal.

Isto não é um convite: é uma pista e uma senha, um sinal de reconhecimento a ser usado entre os exploradores no limiar dessas regiões, caso um guia confiável seja desejado e desejável.

Companhia, nos tempos que correm, é bem-vinda.

Elizabeth

Primeiro acabe com todo o estoque de vinho. Tome cuidado para não beber demais, você não será muito útil se estiver bêbado, então tome apenas alguns goles e vire o resto dentro da pia da cozinha. Depois apanhe o número máximo de aspirinas, comprimidos e cápsulas coloridas que puder encontrar dentro dos armários. Entretanto, tome apenas uma dose que seja insuficientemente potente para causar o óbito. É preciso que os legistas descubram que você ingeriu os remédios, mas isso não quer dizer que você deva propriamente tentar cometer suicídio. Vá até o quarto e vasculhe o fundo da gaveta da escrivaninha ao lado da cama. Encontre as balas. Todas elas. Abra o guarda-roupa e pegue a pistola automática nove milímetros. Segure-a como seguraria seu pênis. Se você for uma mulher, pense que está segurando o pênis de alguém. Se for uma lésbica, um ser assexuado ou um pônei, apenas segure a maldita pistola e sinta sua pulsação fria e muda, a vibração do gatilho estendido ao longo de seu indicador. Carregue-a. Engatilhe. Certo, agora vá até o banheiro e masturbe-se pensando em Jesus Cristinho, seu cachorro, sua mãe ou o que quer que cause excitação em você. Vista-se, calce seus sapatos e cheire algo que seja suficientemente pulverizado para entrar por suas narinas. Pegue as chaves do carro, ponha fogo nas cortinas e saia de casa. Na rua, acelere até achar que o motor irá fundir e explodir em chamas, e então acelere mais um pouco. Curta o momento, você não terá nada parecido pelo resto da eternidade. Perfure os sinais vermelhos e jogue os carros para fora da estrada. Pense nisso como uma forma de tornar a vida desses motoristas menos estúpida e monótona. Mas você não precisa pensar. Apenas faça. Costure pelo trânsito e atropele os idosos e os cães que cruzarem seu caminho. Ao invés disso, procure cruzar o caminho deles. Assim não dirão que os pedaços de gente e animais mortos grudados no seu pára-choque estão ali por acidente. Ligue o rádio, procure a música mais barulhenta que encontrar e se divirta com a possibilidade de o vocalista ser um suicida em potencial. Ou não. Dirija até o shopping mais movimentado da cidade, estacione atravessado em uma vaga reservada a deficientes, desça e entre no elevador. Olhe no espelho e sorria, e saiba que eles põem espelhos nos elevadores porque as pessoas são tão vaidosas que não conseguem resistir ao próprio reflexo. Isso diminui em quase cem por cento a taxa de vandalismo dentro dos elevadores. Ninguém se preocupa com a destruição e barbárie quando está diante de si mesmo, olhando para dentro dos próprios olhos. Por isso você vai se manter longe dos reflexos. Por isso vai atirar nos espelhos que vir. Destruir as vitrines das lojas. Aperte todos os botões dentro do elevador e desça no primeiro andar em que as portas se abrirem. Caminhe entre as pessoas e tente imaginar o que se passa na cabeça delas, procure um bom motivo para entregá-las à redenção, sinta o peso daquela coisa dura e gelada presa em seu cinto na parte de trás da calça. Pare de caminhar entre a cafeteria e a loja de artigos esportivos, rogue em silêncio que “sangue” é a palavra do dia e então dissemine a palavra pela praça de alimentação. Empunhe a pistola e dispare contra o jovem casal se beijando apaixonadamente. Acerte primeiro a garota, e divirta-se com o desespero dele quando se vir coberto pelo cérebro dela.Você é Lee Harvey Oswald assassinando Elvis. Quando os filhos de deus começarem a correr, fuzile-os. Atinja as cabeças, os braços, os joelhos, os estômagos. Acumule os corpos. Não deixe que o total de mortos seja um número terminado em zero, ou as notícias no jornal da noite perderão a credibilidade. Ninguém dentro do shopping perceberá que você é somente uma pessoa drogada com uma porção limitada de balas, então se mantenha atirando e recarregando, procurando não acertar muitas crianças para que ninguém diga que você teve uma infância traumatizada. Mas eles dirão isso. Portanto divirta-se deliberadamente e acabe com todos. Quando sua munição acabar, deixe que os cordeiros do Senhor continuem correndo desesperados, pare ao lado do homem grisalho com uma bala cravada no peito e use o sangue para escrever “Eles me obrigaram a fazer isso”. Não escreva nada no singular, ou dirão que você se referia a Satã. Por outro lado, é isso mesmo o que vão dizer. Deixe a pistola de lado e arranje um taco de beisebol naquela loja de artigos esportivos, então corra pelo shopping e destrua as vitrines mais brilhantes e coloridas. Defeque sobre as prateleiras de cd’s importados e as caixas registradoras, assim no futuro você se tornará um herói da subcultura underground e um ícone da revolução anticapitalista. Venderão botons com seu rosto estampado através de sites neonazistas, satanistas e modernistas. Você será o herói cult cultuado pelas próximas três gerações. Isso pode não ser verdade, mas certamente você se deslumbrará com essa hipótese. Na loja de roupas importadas ponha botas de salto alto, troque suas vestes por um vestido longo e escuro e vista um casaco de qualquer marca realmente importante por cima. Quando tudo acabar, dois terços da população consumista terão associado o logotipo em seu ombro com as dezenas de corpos espalhados pelo shopping. Você pode imaginar as conseqüências disso, então sorria e caminhe pelos corredores cantando “Singin in the Rain” e rodando o taco de beisebol nas mãos, desfilando para todas as câmeras que nesse exato momento capturam imagens suas que serão editadas e vinculadas aos meios de comunicação virtuais, televisivos e impressos pelo próximo mês e meio. A propósito, são as mesmas imagens que servirão de base para o filme que será feito sobre você daqui cinco anos. A película sairá direto nas locadoras, e nos bônus especiais o diretor e o elenco vão dizer que de forma alguma apóiam suas atitudes ou compartilham seus ideais. É provável que todos os espectadores tentem fingir o mesmo. Faça coreografias improvisadas quando estiver estilhaçando as vidraças e chutando os cadáveres pelo caminho. É preciso que você dê algo para o ator que o representará se fundamentar. Vá até uma das três livrarias e encontre todos os exemplares de “O Apanhador no Campo de Centeio”. Empilhe-os metodicamente, tenha certeza de que suas ações sejam feitas em um ângulo favorável à câmera de segurança, puxe o isqueiro que você roubou daquele garoto baleado perto da perfumaria e só então transforme os livros em uma pira, ria ensandecidamente enquanto o papel estiver queimando e vá embora antes que as chamas se apaguem. Muito bem. Agora, nesse instante, você deve perceber as sirenes ecoando cada vez mais próximas, um tumulto crescente do lado de fora do shopping e um burburinho invadindo os corredores. A essa altura você está sozinho dentro desse antro de dinheiro e riquezas, você e trinta e sete corpos, além dos nove feridos que contarão suas histórias no documentário que será feito sobre homicídios em massa, e claro, há também algumas pessoas dentro dos cinemas, terminando de assistir a história sobre o gato falante. Um punhado de gente se refugiou dentro dos banheiros, mas isso é um detalhe que pode ser ignorado no momento. O que importa agora é você saber que o barulho de metal estalando a alguns metros de onde você está, esse é o barulho de muitos policiais invadindo o shopping e batendo as portas, correndo para lhe pegar mas, ainda assim, dando uma chance para que você saiba que eles estão chegando e tenha tempo de correr como um louco até o estacionamento, encontrar seu carro e girar a chave que já estava na ignição. Eles lhe dão essa chance para que o documentário seja divido em um número maior de partes e os noticiários possam documentar sua fuga ao vivo. É por isso que do lado de fora do shopping dezoito redes de televisão diferentes estão filmando cada movimento seu quando você sai a cento e dez por hora do estacionamento e acelera contra a barreira de carros policiais estacionados estrategicamente de modo a permitir que você passe através de uma brecha, atingindo um ou dois carros para que cada cameraman tenha a oportunidade de enquadrar uma colisão que será exaustivamente reprisada nos canais abertos. Você está novamente nas ruas, dirigindo completamente embriagado e drogado. Não importa se você bebeu apenas um terço de uma taça de vinho suave e tomou duas aspirinas para dor de cabeça com cinco comprimidos antiácidos e jogou o resto dos remédios que poderiam matá-lo pela janela da sala. Você não pode mudar a história. É a história quem muda você. Siga reto pela rodovia principal, entre a esquerda e pegue a estrada para a cidade vizinha, ignorando por completo o helicóptero que voa duzentos metros acima de você. Esse é o momento mais importante de sua vida, não se distraia. Mantenha uma mão firme no volante enquanto com a outra abre o porta-luvas e apanha o gravador portátil que sua mãe lhe deu no seu último aniversário. A fita dentro dele está repleta de músicas melancólicas e deprimentes que serão utilizadas na trilha sonora do longa-metragem, mas você aproveita os quarenta segundos intencionalmente reservados no fim da gravação para registrar seus últimos momentos. Com as sirenes das viaturas policiais formando um pano de fundo que mais tarde será remasterizado, você justifica seus atos explicando que se Deus não desejasse que todas aquelas pessoas morressem, teria enviado um anjo para impedi-lo. Exatamente como disse aquele comedor de criancinhas, estuprador, o tal velho que causou interferência na cadeira elétrica porque enfiava agulhas na região púbica. Depois você diz que, se aquelas pessoas não morressem por suas mãos, teriam morrido cedo ou tarde, talvez de maneiras muito piores. Isso foi o que outro cara disse quando assassinou um monte de gente, mas você não se lembra o nome dele. Por último você diz que finalmente compreende o sentido da vida e o plano divino, diz que a culpa é dos seus pais e então fala que deus é gay. Nada do que você diz é original, apenas uma compilação de citações e fragmentos de épocas passadas. Antes que a gravação seja interrompida, você diz qualquer coisa sobre a falta de esperança em um mundo melhor e o corpo de uma garota que está enterrado em algum terreno baldio, o qual a polícia passará os próximos seis meses procurando sem sucesso, pois simplesmente ele não existe. Seus quarentas segundos acabam, as sirenes e as luzes vermelhas se aproximam um pouco mais e você gruda o pedal do acelerador no chão, dirige por mais alguns minutos e canta uma canção razoavelmente famosa para não sentir a pressão do tédio. Alguns quilômetros antes da cidade seguinte, com o tanque do carro quase vazio, você avista enfim uma Igreja de Jesus Cristo dos Santos dos Últimos Dias na beira da estrada, respira aliviado e gira o volante na direção do acostamento, jogando o carro contra os muros enfraquecidos da igreja. Em seu último pensamento você pede a deus que haja muitos crentes dentro dela naquele momento.



Agora você faz parte da História.